Na morte do Fernando
Pires
O chefe e a escova
Antunes Ferreira
E
|
ntrava na redacção e a primeira coisa que fazia –
absolutamente obrigatório – era tirar o pó da secretária com uma escova que
guardava na segunda gaveta. A malta toda sabia desse ritual, respeitava-o
obviamente mas alguns jornalistas mais dados a chalaças comentavam sotto voce que um dia ele traria também
um pano molhado em detergente para remover alguma marca de tinta – o que era
quase impossível pois mais cuidadoso do que ele, era impossível. I M P O S S Í
V E L com todas as letras.
O
|
tom baixinho de voz
era importantíssimo não fora ele ouvir o dito – o que significava entornar o
caldo. Porque o homem não era de brincadeiras, muito menos para brincadeiras.
Içava habitualmente a bandeira da cara de pau e o pessoal tinha-lhe respeito,
muito mais do que medo. Porque era exigente, chegava ao pequeno pormenor, mas
no fundo era uma defesa com que se escudava dos que não envergavam a camisola
do jornal. Por isso – não contassem com ele.
C
|
onheci-o quando fazia relatos radiofónicos de jogos de
futebol. Ambos” putos”, ainda que ele tivesse mais dez anos do que eu. Era
então um tipo com cabelo…, o que mais tarde seria desmentido mas nunca nas
páginas do seu quotidiano. Porque o
diário da avenida da Liberdade também era dele e em certos momentos até era ele. Devoção ao título gótico,
respeito pela oficina que ficava ali ao lado da redacção, intransigência
perante a falta de verdade, do rigor, do desprendimento e, sobretudo do
desleixo.
D
|
epois afastámos-mos, a vida é feita de desencontros, de
caminhos afastados, mas também dos cruzados. E foi então que nos descobrimos na
redacção do DN, ele como chefe na sala verde de tantas memórias, algumas mais
enviesadas, eu no “gabinete da chefia” (pomposa denominação, do aquário dito
principal) , aconchegado nos restantes com paredes de vidro, duplamente
transparentes. O Mário Zambujal era o
chefe da Redacção, até que decidiu voar para outros pombais e sucedeu-lhe o “homem do diário” fundado por Eduardo
Coelho e Tomás Quintino Antunes (quem sabe se talvez fosse meu primo em
quadragésimo grau, ou seja muito afastado…) em 1864.
J
|
untámos os nossos esforços – mais os dele do que os meus… –
e desatámos a fazer o Diário de Notícias. Foi então que a nossa Amizade ganhou
raízes e floresceu. As enésimas horas que passámos juntos foram inolvidáveis e
o meu conhecimento dele aprofundou-se em cada dia que passava. Para mim foram
apenas dezasseis anos no DN que face aos 55 dele saíram naturalmente na mó de
baixo. Era o Fernando Pires e eu, o Antunes Ferreira, assim a modos que o
Estica e o Bucha.
Q
|
uando tomei a decisão de
sair do DN – o que tanto me custou, podem crer – foi o Fernando o
primeiro a tentar demover-me. Que porque torna e porque deixa, fazes muita
falta ao nosso jornal, deixa-te de fitas e amanhã lá estamos. Mas eu não
estaria - após o prazo legal que tinha de dar ao patrão. A privatização que
para mim fora um roubo impedia-me de continuar. E no jantar de despedida que me
ofereceram o Fernando disse-me do seu sentimento ao ver-me partir. Comoveu-me
até a uma lágrima medrosa, envergonhada, maricas e prontamente afastada.
N
|
o resto, que mais dizer? Dos sofrimentos que passou, da sua
luta contra um maldito cancro? Da tristeza com que acompanhou o drama da sua
Maria Fernanda? Das esperanças que depositou no Tiago, como já fizera com o Zé
António? De tudo o que pinta o lado menos bom do quotidiano. Mas, no outro
prato da balança, os amigos fizeram-na pender para ela, desequilibraram-na; a
Amizade tem muito peso – se não é falsa. E eu que o diga…
F
|
ernando aqui te deixo um último abraço que não pude dar-te
em vida. Mas como não acredito na “outa” não te posso sequer imaginar sentado à direita de Deus
pai, mas só depois de teres escovado o assento – que, se acreditasse, era uma
nuvem com um monograma: DN – a gótico.
Deste Homem que deu
55 anos de vida ao “seu” jornal, a Direcção do “Diário de Notícias!” foi capaz
de NÃO dar uma linha de título na primeira página: MORREU FERNANDO PIRES.
Sem comentários:
Enviar um comentário