Mais um gamanço, com a devida autorização do autor (blogue Azul-Canário)
Os gatos e a cidade
O Boneco de
Maria
Falar de gatos é também falar da cidade. E dos donos, se
dono gato consente. Boneco, gato branco
do Cais do Ouro – o Porto rente à foz do rio, olhos no Cais da Afurada – abre o
tema. A história conta-a Maria de Lurdes na primeira pessoa, 75 anos,
comerciante desde os oito, filha de pescador, mulher sábia, solidária, vida
feita de luz e sombras, plena de medos, anjos, profetas, pássaros. E
gatos.
Texto e
fotografia Augusto Baptista
Chama-se Boneco, tenho-o há 10 anos. Foi apanhado
no meio do rio, pequenito. Veio de cima a correr, avançou os muros do cais e,
frente à prancha, quando viu que o queriam apanhar, saltou. Chegou ao meio da
corrente, já ia.
Andava então um senhor, com um
barco destes pequenos, que por sinal já faleceu, gritei para ele o salvar.
Apanhou-o e trouxe-mo. Botei-o num caixotinho, tinha de ir ao veterinário,
estava muito frágil, cheio de lama, molhado, fui buscar uma toalha. Enquanto
fui, fugiu-me para dentro do barraco, escondeu-se. Dei-lhe comida, não sei se
doze se quinze dias, leite, água. Ele não comeu, estava cheio de trauma,
qualquer coisa que apanhou lá em cima, ou cão, ou esteve metido nalgum motor de
carro.
Eu consumida, não comia, não aparecia. Ao fim desse
tempo, começou a aparecer. Via-o distraído botava-lhe a mão, fugia, deixava-o
ir. Depois começou a comer. Tornava-lhe a pôr a mão, tornava a fugir. Até que se
acarinhou a mim e hoje não vê outra coisa. Se um dia eu lhe faltar,
morre.
Assim se passaram 10 anos.
Já esteve muito mal. Se não estivesse nas minhas mãos,
tinha morrido. Há cinco anos deu-lhe a pedra no rim, na bexiga. Era um domingo,
eu sem saber se havia algum veterinário de serviço.
Apareceu então aqui um senhor e perguntei-lhe se
conhecia algum veterinário que trabalhasse ao domingo. Disse conheço e que me levava. Fui com o
senhor. A médica disse que ele tinha de ficar lá um dia. Chegou ao dia, era
outro dia, e outro dia. Que se segue, já ia em oito dias. Entendi que ela estava
a comer, ou queria comer. Como me viu muito agarrada ao animal e o animal a mim,
queria tirar proveito. Levou-me, naqueles sete ou oito dias, trezentos e tal
euros. E queria que ele ficasse lá mais um mês, para operá-lo. Eu não tinha
possibilidades e disse Oh senhora
doutora, eu sou uma pessoa reformada, não sou rica. É por isso que morrem
muitos animais, levam mais dinheiro por tratá-los do que à gente. Fui
buscá-lo.
Quando o animal me viu, agarra-se a mim como um bebé,
encosta a cabeça aqui no peito, miau,
miau, aos gritos a mim, como quem leva-me. Se havia eu de lhe fazer
carinho, ele é que me fazia a mim, com as unhinhas fechadas, a fazer-me carinho
na cara.
Passou aqui, era nas festas do S. Pedro, nas marés
vivas, passou aqui um senhor, viu o bichinho muito mal. O que é que ele tem? E eu disse Está muito doente, passou-se isto assim,
assim... E o senhor Olhe, eu tive o
mesmo problema, e o que me safou foi um medicamento de uma ervanária. E eu
disse-lhe O senhor se soubesse o nome era
um grande favor que me fazia, eu tenho amor aos animais, dou de comer às pombas,
dou de comer a tudo, sou pobre e deixo de comer para dar aos animais, já tenho
tirado da boca para lhes dar. Então ele disse Não sei se dá para animal. E eu Se estudam nos animais para nos tratar a
nós, se não fizer bem, mal também não vai fazer… Ele deu-me o nome do
produto e eu fui comprar. Com catorze euros, por Deus, que são sete contos,
safei-o.
Foi habituado aqui, sempre à minha
beira. De noite vem ter comigo, olha para os meus olhos a ver se estão fechados
ou abertos. Eu faço que não estou a ver, e ele lambe-me as mãos, o cabelo, para
eu não dormir, pega nestas duas patinhas, encolhe, até treme com medo de me
magoar, faz-me carícias na cara.
É como se fosse da família. É a minha família. Já tem
entrado por aqui a cheia não sei quantas vezes, já chegaram a vir os bombeiros
sapadores me buscar, não o largo. Nem a ele, nem a uma cadelinha com vinte e tal
anos, nem a uma outra gata que tenho. Já tive mais, tinha-os ali atrás, mas
quando era a cheia que andava por aqui, ia buscá-los. Cheguei a dormir com eles
em cima do balcão.
Tristezas, que agora que o Porto
tirou o campeonato, ele anda contente. Um senhor ofereceu-lhe uma coleira e,
outro, um cordão azul e o apito. Não são portistas, são do Benfica. Sabem que eu
gosto do Porto, deram isto ao gato.
Filha do mar
Trabalho desde os oito anos. A
minha mãe teve doze filhos. Eu era a mais velha, criei-os a todos. Ela saía de
manhã para ir trabalhar, para ajudar o meu pai que era pescador, no tempo da
guerra, no tempo em que não havia pão, no tempo do racionamento.
Com oito
anos andava já carregadinha pelas rua a pregoar. E nunca enriqueci. Andava a
vender peixe. Vendi de tudo: martelinhos, manjericos, meias para senhora, caldo
verde, sardinha assada, ovos de cheiro. Ia e vinha a pé, no vento e no frio,
para ganhar algum e ajudar a criar os meus irmãos. E o que era o alimento deles?
Água fervida com açúcar, e um bico de borracha, quando choravam, que eram de
muito alimento. Eu achava um pano, fazia-lhe uma maminha de açúcar para se
calarem até a minha mãe chegar e lhes dar o peito. Passei muitos trabalhos. E
vinha o carro da Câmara, uma vez por mês nesse tempo, lavar e desinfectar as
casas com creolina, por causa das febres tifóides. Eu por acaso nunca tive, mas
a minha irmã a seguir teve, esteve internada no Goelas de Pau.
Tanta fome.
Nunca tive um brinquedo. Com
dezoito anos, por aí, andava uma senhora a vender umas rifas pelo Natal para uma
boneca. Comprei uma rifa e a boneca saiu-me. Dei-a a uma menina que nunca teve
brinquedos, como eu.
O meu pai era pescador. Para
trazer meia dúzia de sardinhas para dar aos filhos tinham de ser amanhadas e
escamadas e com o rabo tirado. Não deixavam passar na lota do peixe, estavam
guardas nos portões. Só arranjadas. Uma ocasião, pelo Natal, eles recebiam à
semana, apanharam um peixito e ganharam alguma coisa. A consoada era chicharros
salgados, escalados, e batatas, era uma piosca – uma roleta, pequenina, o nosso
entretimento na noite de Natal – e
era meia dúzia de castanhas cozidas e meia dúzia de figos. A gente nem comia ao
meio-dia, que era para comer muito à noite.
Nessa semana o meu pai comprou-nos
uns soquinhos, uns para mim, outros para a minha irmã. Eram de madeira e, em
cima, tinham um laço preto, colado. Ofereceu-nos aquilo no Natal, que eu nunca
tive calçado, andava descalça. E pagavam-se multas. Para eu andar a vender, ia
às lixeiras aproveitar o calçado que não tinha nada por baixo, para não ser
autuada.
E então deu-nos os soquinhos, nós
comemos os chicharros salgados, com couves e batatas, jogámos à piosca, era às
castanhas e figos, e lembrei-me, eu e a minha irmã, que nem havia fogão, era uma
coisa de pedra com lenha, uma cinza que estava ali, vamos botar os soquinhos na
chaminé para o Menino Jesus nos trazer uma prenda. A gente ouvia que era só para
os ricos que o Menino Jesus trazia prendas, mas éramos inocentes, e então
botámos.
O meu pai que Deus tem, sem ter um
brinquedo para dar aos filhos ali nos soquinhos, pegou numa agulha com linhas,
fez um cordão de castanhas e figos e botou-os em cima. Ao outro dia quando
acordámos, a primeira coisa que nos lembrámos foi de ver o que o Menino Jesus
nos trouxe. Quando chegámos à chaminé vimos os soquinhos com aquele cordão,
ficámos tão alegres. Eu andava na rua com os socos, cheia de vaidade. A nossa
inocência, com meia dúzia de figos e meia dúzia de castanhas em cima dos socos.
Eu vou dizer mais uma do meu
defunto pai. Quando ele estava para seguir o caminho dele, como nós temos de
seguir o nosso, virou-se para mim e disse Tanto trabalhei, para morrer pobre. As
palavras que eu dei ao meu falecido pai foram assim O dinheiro, meu pai, não vale nada, você foi
o melhor pai do mundo. Ele começou com os olhinhos a olhar e, passado pouco
tempo, foi.
Entre um anjo e um profeta
Aqui há dois anos ou mais, estava
eu aqui sentada, perto da meia-noite bateram-me à porta, perguntei quem era.
Responderam-me, mas como não percebi, levantei-me como se fosse meio-dia e fui
abrir. E o que é que eu vi? Um velhinho, barbas muito grandes, com uma bengala,
e disse-me Não tem por aí um bocado de
pão, que eu venho de fazer uma longa viagem, queria-me encostar a descansar.
Fiquei muito aflita, queria dar o melhor, comida quente, comida boa, não
tinha. Fiz umas sandes com chouriço às rodelas e dei ao senhor. E ele disse-me
Agora não tem uma pinga de água por favor
que me dê? Não, vou-lhe dar vinho num pacotinho para o senhor beber. Eu não
queria vinho. Então nem vai beber vinho nem água, vou dar-lhe uns sumos. O
senhor foi à vida dele e até hoje nunca mais o vi. Foi por acaso? Com tanta casa
aberta, tanta luz, e vir aqui a este fundão, que só existia eu neste barraco,
que é um ermo, foi por acaso? Não posso dizer quem era, mas só sei que a
conversar com um senhor ele me disse Nunca mais o viu, nunca mais o vai ver, era
um profeta.
Também não é por acaso que quando
eu tive uma embolia pulmonar e estive internada no Santo António, uma noite,
estavam as luzes apagadas, tudo em silêncio, eu com os olhos fechados, mas
acordada, no meu juízo perfeito como estou agora, senti que estava ali alguma
coisa à minha beira. Abri os olhos. Aos pés da minha cama era assim um nevoeiro,
e, por trás do nevoeiro, uma imagem. Não sei se era A, se era B, se era quê, não
sei quem era. Mal abri os olhos e vi, aquilo foi-se. Para mim, pelo símbolo que
eu vi, posso estar enganada, para mim era o anjo da minha guarda que estava ali
a tomar conta de mim.
Sempre fui humana
Vem aqui tudo parar. Quando as
patas estão com os ovos, às duas e três da manhã já me tenho levantado para lhes
dar comida. Que elas chamam por mim. Já me conhecem. As patas dormem em cima das
pedras. E anda aí também um ganso-pato. Eu chamo por ele, para lhe dar de comer
e ele vem ao meu chamar. E há uma gaivota que só vem de noite, chega, olha para
mim, à espera que eu lhe dê de comer. Eu guardo sempre qualquer coisa para lhe
dar. Aqui há tempos, não pude ir logo, cheguei e ela estava pousada num barco.
Chamei-a Oh pequenina então tu não vens
comer? Ela levanta e vem ter comigo. Andou também aí um pato mandarim. É do
feitio de um garnizé, é um garnizé direitinho. É produzido na Inglaterra, e vive
no Japão e na China e na Rússia.
É aqui que eles param todos.
Quando chegam, todos vêm aqui, alguns começam a palrar. E há patos pequeninos
que nascem cá. À beira daquele barraco, daquele quiosque, está um ninho de pato
coberto de folhas.
São seres vivos como nós. Antes da
gente, as aves já cá andavam. O mundo foi habitado por aves. Já tinham dois mil
anos, ou dois milhões, que cá andavam. Depois é que nós chegámos atrás delas.
Aqui há tempos fui ao supermercado
nos Lóios e vi algumas pombas. Antes, mal me viam andavam logo à minha volta,
agora têm medo, andaram para lá a matar. Ao menos podiam botar qualquer coisa
para elas não produzirem. Agora matar não acho bem. Todos têm direito à
vida.
Sempre fui humana, não sei se foi
por viver nisso, mas há muito quem tenha vivido nisso e até são mais
ordinários.
Uma ocasião, estava na Afurada na
minha casa, encontrei doze gatinhos. Passei por aquilo e fiquei doente. Fui
arranjar uma caixa de papelão e botei-os lá dentro. Vim-me embora. Quando
cheguei a casa começou a cair saraiva e lembrei-me que os bichos iam morrer. Fui
buscá-los, trouxe-os todos. Com essas borrachas de limpar os ouvidos, criei-os a
leite, leite magro. Eles quando me viam com a borracha já sabiam que era para
lhes dar de comer. Era quem mais queria ser primeiro. Davam a mamada, tiravam a
boca e olhavam para mim. Como os bebés fazem às mães, assim eles faziam. Criei
os doze e viviam os doze comigo.
Outra vez, ia a sair de casa,
parece que os animais conhecem a gente, aparece-me um cão que nunca me viu,
nunca eu o tinha visto, com uma pata ao dependuro, assim direito a mim, à minha
porta. Não fui trabalhar. Fui tratar dele para a protectora dos animais. Era
assim. Eu até se visse um cão morto ia a casa, pegava num lençol, cortava a
meio, ia embrulhar o cão, fazer uma cova e enterrava-o. Quantas covas eu fiz
naquele monte da Afurada.
Uma pessoa assim
Sou Maria de Lurdes, nasci a 20 de
Dezembro, tenho 75 anos, mas no meu cartão de identidade tenho menos um ano e
faço em Janeiro, porque a minha mãe roubou-me à idade. Que, antigamente, para
não se pagar multa, pagava-se quando se fosse registar fora do prazo, ela deu a
data trocada. Mas a verdadeira data e os anos que eu tenho são 75, mas no cartão
de identidade são 74.
Nasci na Afurada, sou dali, nascida e criada. Tenho lá
casa, mas é muito antiga, e como não tenho dinheiro para arranjá-la, fico aqui
no Cais do Ouro a tomar conta do barraco. Isto não tem nada que roubar, nem
dinheiros, nem nada, mas esta juventude… Quando eu não ficava cá entraram oito
vezes, destruíram tudo.
Não casei, nunca casei, para criar
os meus irmãos. Fui mãe deles todos. Mas hoje não dão valor. A minha mãe teve
doze filhos, seis estão vivos. Eu acho que nenhum é igual a mim, somos
diferentes. É natural, temos cinco dedos na mão, nenhum deles é igual.
Não andei na escola, nem andei a
estudar, nem andei a fazer nada. Vivi na rua. Há pessoas que passaram por tudo,
mas a vida sorriu-lhes, são os maiores. Julgam-se mais do que os outros, mas
vamos todos para o mesmo buraco.
Noutro dia ia no autocarro, estava
sentada e ao lado tinha um lugar vazio. No outro lado estava uma senhora
sentada. O cavalheiro, que era um cavalheiro para todos os efeitos, preto, mas
educado, e a fulana quando o viu ali começou assim a virar a cara e diz o senhor
para mim A senhora não se importa que eu
me sente? Homessa, o senhor não pagou
o seu bilhete como eu? A outra mostrou fraca cara para dar achega a ele O senhor tem tanto direito como eu e o mesmo
direito que qualquer pessoa que aqui vai. Sou uma pessoa
assim.