Aqui vai mais um textículo (como lhe chama o autor), do insígne jornalita e blogger Henrique Antunes Ferreira ("A Minha Travessa do Ferreira"), que nos dá a honra de o publicar.
Lázaro ressuscitado
Antunes
Ferreira
Sinónimo de bom orador na língua portuguesa é António Vieira, ou
para ser mais preciso, o padre António Vieira. São mais de 500 os seus sermões,
dos quais o Mais conhecido é, indiscutivelmente, o de Santo António aos Peixes.
A oratória foi pelos séculos XV, XVI, XVII e XVIII, praticada pelos sacerdotes
do alto dos seus púlpitos.
Já na Antiguidade a fama de Demóstenes em Atenas e de Cícero em Roma
na arte de bem falar, perdurou por séculos e séculos e ainda hoje se refere que
o grego, gago de nascença, usou para corrigir a dicção, falando com seixos na
boca; isto durante uns anos até se tornar o orador que assim entrou na História
Universal.
Por seu turno, o romano ficou célebre pelos seus discursos entre os
quais se destacam as catilinárias, feitos no Senado de Roma e perante o povo,
contra Catilina, um nobre que tentava destruir as instituições republicanas. Quousque tandem abutere, Catilina, patientia nostra? Até quando,
enfim, ó Catilina, abusarás da nossa paciência? A frase continua e continuará a
ser usada.
O padre Teodósio, Teodósio de Jesus Pimenta, nascera com o dom da
palavra. Nascera, crescera e chegara a sacerdote empunhando a oratória como
arma de arremesso contra o demo e seus seguidores, em nome de Cristo – ainda que não se saiba se este lhe
terá passado procuração para o efeito. Afastem-se minudências sem grande valor.
Todos os Domingos saía sermão, sem falha, sem hiatos, persistente,
pontual e verdadeiro. Pastoreava uma freguesia, onde vivia com sua irmã
Celestina. Diziam as más línguas que era apenas uma justificação perante o
mundo, pois que Teodósio e Celestina partilhavam a mesma cama. Adiante; línguas
viperinas.
Pois numa manhã de Domingo, Teodósio acordou rouco. Rouco?
Rouquíssimo. E o sermão? Nisto meditava quando se dirigia à igreja paroquial e
por isso disse com decibéis negativos ao sacristão Jaquim. Como iria ser?
Ninguém o entenderia com aquele falar roufenho. Uma desgraça!
Jaquim atalhou a desdita: Padre Teodósio, hoje é a homilia sobre o Lázaro
e eu já o ouvi tantas vezes que a sei de cor e salteado. Vou eu para o púlpito
e digo-a ao seu rebanho. Nem pensar, tu és um desbocado, nem que lavasses a
boca vinte vezes em água benta deixarias de o ser. Nada, padre; eu subo e o
senhor fica cá em baixo e no caso de alguma derrapagem avisa-me e eu corrijo.
E assim foi, ainda que o bom clérigo desconfiasse do que poderia
acontecer; atento, foi ouvindo. Lá em cima, o Jaquim começava: Voltara o tipo à
Judeia e… padre Teotónio
dirigindo-se ao sacristão: é Jesus, Nosso Senhor. E o orador, pois meus irmãos,
enganei-me: voltara Jesus Nosso Senhor à Judeia e ao chegar a Betânia vieram
umas gajas aos gritos…
Não são gajas! São santas mulheres, entre as quais Marta a irmã do
falecido que informou o Senhor da morte de Lázaro, sepultado já há quatro dias – e o sacristão emendou, ipsis verbis,
prosseguindo: só tu, Senhor o podereis ressuscitar. Então as santas mulheres
conduziram Jesus Cristo, à tumba de Lázaro. Ali chegados…
O eclesiástico pensou de si para si, o Jaquim entrou nos eixos.
Safa! O dito cujo prosseguiu: O filho de Deus impôs as mãos e disse – Lázaro levanta-te e anda. E o
ressuscitado levantou-se e andeu. Teodósio quase perdeu o tino e, regougou para
cima: é andou, estúpido, é andou, estúpido. O sacristão; pois andou estúpido
durante três dias e depois passou-lhe…
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