Os "povos" que não querem trabalhar
Em 2010, ainda governava José Sócrates, Cavaco Silva ouviu do Primeiro-ministro checo as seguintes palavras: «O défice do nosso orçamento chegou, o ano passado, aos cinco por cento. Eu fico muito surpreendido por Portugal não estar preocupado quando tem um défice de oito por cento. É um caso curioso, interessante e espero que não estejam aqui jornalistas porque, a nível interno, eu digo que é absolutamente necessário eliminar o défice o mais depressa possível e defendo a introdução de medidas radicais para o conseguir. Portanto, sr. presidente, peço-lhe que não divulgue por cá que vocês têm um défice ainda maior que o nosso».
Vaclav Klaus fez várias afirmações deste tipo diante de Cavaco Silva, algumas nos contextos mais inapropriados, e o Presidente ficou muito incomodado. Acabou por responder que Portugal iria sem dúvida no futuro ter défices mais baixos e elogiou um dos PEC de Sócrates.
Muita água passou de 2010 a 2015. É natural que hoje Cavaco Silva se sinta como Klaus face à Grécia, até porque as suas afirmações da semana passada são do mesmo teor das do político checo. No intervalo, Portugal “ajustou”, ou seja, aumentou exponencialmente os seus impostos, cortou salários e despediu centenas de milhares de portugueses, levou milhares de empresas à falência, destruiu a vida e o futuro de muitas famílias portuguesas, acabou com a escassa e débil classe média que se formara depois do 25 de Abril, alterou profundamente o equilíbrio das relações laborais a favor do patronato, vendeu todas as “jóias da coroa” menos uma, aumentou a pobreza, a exclusão social e as diferenciações sociais, desmantelou vários serviços públicos na administração central, na saúde, na educação e na justiça, e tem uma política externa ficcional. Mas “ajustou”, pelo que Cavaco Silva pode aparecer orgulhoso diante do sucessor de Klaus e dizer, na linguagem adolescente de Passos Coelho, que “fez o trabalho de casa”. Como batemos no fundo, alguns números da economia são debilmente positivos e outros continuam negativos, uns crescem, outros descem, outros já cresceram e depois desceram. Nalguns casos, as coisas melhoraram exactamente pelas razões que o governo demonizava, como seja o consumo interno.
Nada de sólido, tudo muito instável e ninguém de bom senso é capaz de dizer que foi feita qualquer “reforma estrutural” em Portugal, muito menos na economia. Na sociedade sim, mas chamar-lhe reformas é um insulto à inteligência. Andou-se para trás. Quem quiser “compor” o país, vai ter enormes dificuldades.
É verdade que os juros estão historicamente baixos, só que não há nenhum analista independente que atribua essa circunstância aos méritos nacionais, mas sim ao BCE e ao excesso de liquidez dos investidores, que levaram quase todos os juros europeus (incluindo os gregos, até Janeiro de 2015), a baixar muito. A única coisa que o governo pode dizer a seu favor na questão dos juros é que, como sempre foi bom aluno das políticas de “ajustamento”, não foi um óbice para essa descida, como é o haver hoje em Atenas um governo rebelde. Mas, como também qualquer analista independente dirá, os juros são de tal maneira voláteis face aos diferentes riscos europeus, que podem voltar a subir a qualquer altura.
Cavaco Silva e Passos podem hoje esnobar da Grécia, como Klaus fazia com Portugal, mas ao fazê-lo enfileiram no pior que existe hoje na política europeia: a perversão dos objectivos da União, transformada num instrumento da política económica e financeira da Alemanha. A essa situação de facto, que nenhum Tratado permite, juntam-se duas outras ainda maiores perversões – o declínio do socialismo europeu domado pelo Tratado orçamental, logo a perda da alteridade política, e o permanente resvalar das democracias europeias para retirar do escrutínio dos parlamentos e, pior ainda dos eleitores, todas as políticas europeias decisivas. Está criado um monstro, e é da natureza dos monstros fazer monstruosidades.
Ora, quando Cavaco e Passos passaram a falar dos “gregos” como uma entidade orgânica, um país de gente preguiçosa, que só quer férias, que não paga impostos, nem aliás coisa nenhuma, das portagens à electricidade, e que pretende viver eternamente à custo do dinheiro estrangeiro, eles engrossaram uma hoste europeia que é demasiado conhecida e que vai do Partido dos Verdadeiros Finlandeses, à Liga Norte italiana de Umberto Bossi e à sua reivindicação da Pâdania.
O caso italiano é muito significativo, porque espelha argumentos muito comuns nas zonas ricas de um determinado país, em relação às zonas mais pobres, muitas vezes rurais e pouco industrializadas, como é o caso do Sul da Itália. Por que razão o Norte italiano rico, industrial, trabalhador e próspero tem que “pagar” para esses preguiçosos da Calábria que vivem da assistência social e não querem trabalhar? O mesmo tipo de “argumentos” existe em vários países: na antiga Checoslováquia por parte dos checos e contra os eslovacos, em Espanha e mesmo em Portugal. E não é verdade que os alentejanos não gostam de trabalhar e querem viver sempre à “sombra de um chaparro” a dormir? E Pinto da Costa não falou várias vezes do Porto e do Norte trabalhador que alimenta os “mouros” de Lisboa para baixo? E em que é que estes “argumentos”, atingindo povos, regiões, histórias diferenciadas, são diferentes dos que a extrema-direita dá contra os “pretos”, os “árabes”, e os “imigrantes”, que também não querem trabalhar, mas viver da segurança social e das regalias dos países mais ricos, em detrimento dos seus habitantes “nacionais”?
Cavaco Silva e Passos Coelho falaram dos “gregos” com o mesmo grau de generalidade e anátema. Como muito dos seus repetidores nos media e nas redes sociais, são as “características” intrínsecas do povo que são atacadas. O que aconteceu na Grécia, nesta versão, é culpa do povo, não dos anteriores governos gregos. Percebe-se, porque o povo votou mal e derrotou o governo preferido por Cavaco Silva e Passos Coelho: o tandem troika-Nova Democracia.
Sim, porque se o PASOK tem culpas no passado, a Grécia era até Janeiro governada por um governo membro do Partido Popular Europeu (de que faz parte Merkel, Rajoy, Passos Coelho e Portas) que foi apoiado pelos partidos no poder na Alemanha, Espanha e Portugal. E mais: foi governado pela troika, em conjunto ou em cima, e se os resultados deixaram a Grécia com a gigantesca dívida que tem, e sem “ter feito o trabalho de casa”, a culpa é de quem? Do Syriza? Silêncio.
E os gregos não querem austeridade, o pecado mortal da Grécia para Cavaco e Passos. Mas o que é que eles tiveram nos últimos anos: despedimentos, falências, encerramentos, corte de serviços fundamentais, cortes na educação, na saúde, na segurança social, uma queda brutal do produto Interno Bruto? De onde é que isto veio, do esbanjamento e da preguiça inata aos gregos? Como é que se chama a isto, senão uma dura, penosa, cega, punitiva austeridade? Na verdade, como Passos Coelho diz com todas as letras: foi pouco, têm ainda que ter mais. Mas o que nem Cavaco nem Passos dizem, é aquilo que é evidente: não resultou, nem resulta, nem resultará. É uma receita errada quer em Portugal, quer na Grécia. Mas era a continuação dessa receita, aquilo a que chamam “cumprir as regras”, que Passos queria para a Grécia, com aquela cegueira que tem os acólitos e que continua mesmo quando os mestres já estão noutra.
Voltando a Klaus, ele disse uma coisa muito interessante, pediu a Cavaco “que não divulgue por cá que vocês têm um défice ainda maior que o nosso”,porque isso iria fazer os checos contestarem as medidas do governo. Uma parte importante da intransigência com os gregos vem de governos acossados, como é o caso do português e do espanhol, que andaram a dizer aos seus povos que não havia alternativa a não ser a política que seguiam.
Ora, a questão não é a de validar o programa do Syriza, ou assinar por baixo de Tsipras e Varufakis, mas a de saber se, no fim de tudo, os gregos têm ganhos de causa ao terem votado como votaram. E se sim, como é que ficam os que tinham para eles a receita de tudo continuar na mesma, votando na Nova Democracia, na obediência à troika, e na política até agora intangível da Alemanha. Esse é que é o mal grego que Cavaco e Passos querem extirpar.
Muita água passou de 2010 a 2015. É natural que hoje Cavaco Silva se sinta como Klaus face à Grécia, até porque as suas afirmações da semana passada são do mesmo teor das do político checo. No intervalo, Portugal “ajustou”, ou seja, aumentou exponencialmente os seus impostos, cortou salários e despediu centenas de milhares de portugueses, levou milhares de empresas à falência, destruiu a vida e o futuro de muitas famílias portuguesas, acabou com a escassa e débil classe média que se formara depois do 25 de Abril, alterou profundamente o equilíbrio das relações laborais a favor do patronato, vendeu todas as “jóias da coroa” menos uma, aumentou a pobreza, a exclusão social e as diferenciações sociais, desmantelou vários serviços públicos na administração central, na saúde, na educação e na justiça, e tem uma política externa ficcional. Mas “ajustou”, pelo que Cavaco Silva pode aparecer orgulhoso diante do sucessor de Klaus e dizer, na linguagem adolescente de Passos Coelho, que “fez o trabalho de casa”. Como batemos no fundo, alguns números da economia são debilmente positivos e outros continuam negativos, uns crescem, outros descem, outros já cresceram e depois desceram. Nalguns casos, as coisas melhoraram exactamente pelas razões que o governo demonizava, como seja o consumo interno.
Nada de sólido, tudo muito instável e ninguém de bom senso é capaz de dizer que foi feita qualquer “reforma estrutural” em Portugal, muito menos na economia. Na sociedade sim, mas chamar-lhe reformas é um insulto à inteligência. Andou-se para trás. Quem quiser “compor” o país, vai ter enormes dificuldades.
É verdade que os juros estão historicamente baixos, só que não há nenhum analista independente que atribua essa circunstância aos méritos nacionais, mas sim ao BCE e ao excesso de liquidez dos investidores, que levaram quase todos os juros europeus (incluindo os gregos, até Janeiro de 2015), a baixar muito. A única coisa que o governo pode dizer a seu favor na questão dos juros é que, como sempre foi bom aluno das políticas de “ajustamento”, não foi um óbice para essa descida, como é o haver hoje em Atenas um governo rebelde. Mas, como também qualquer analista independente dirá, os juros são de tal maneira voláteis face aos diferentes riscos europeus, que podem voltar a subir a qualquer altura.
Cavaco Silva e Passos podem hoje esnobar da Grécia, como Klaus fazia com Portugal, mas ao fazê-lo enfileiram no pior que existe hoje na política europeia: a perversão dos objectivos da União, transformada num instrumento da política económica e financeira da Alemanha. A essa situação de facto, que nenhum Tratado permite, juntam-se duas outras ainda maiores perversões – o declínio do socialismo europeu domado pelo Tratado orçamental, logo a perda da alteridade política, e o permanente resvalar das democracias europeias para retirar do escrutínio dos parlamentos e, pior ainda dos eleitores, todas as políticas europeias decisivas. Está criado um monstro, e é da natureza dos monstros fazer monstruosidades.
Ora, quando Cavaco e Passos passaram a falar dos “gregos” como uma entidade orgânica, um país de gente preguiçosa, que só quer férias, que não paga impostos, nem aliás coisa nenhuma, das portagens à electricidade, e que pretende viver eternamente à custo do dinheiro estrangeiro, eles engrossaram uma hoste europeia que é demasiado conhecida e que vai do Partido dos Verdadeiros Finlandeses, à Liga Norte italiana de Umberto Bossi e à sua reivindicação da Pâdania.
O caso italiano é muito significativo, porque espelha argumentos muito comuns nas zonas ricas de um determinado país, em relação às zonas mais pobres, muitas vezes rurais e pouco industrializadas, como é o caso do Sul da Itália. Por que razão o Norte italiano rico, industrial, trabalhador e próspero tem que “pagar” para esses preguiçosos da Calábria que vivem da assistência social e não querem trabalhar? O mesmo tipo de “argumentos” existe em vários países: na antiga Checoslováquia por parte dos checos e contra os eslovacos, em Espanha e mesmo em Portugal. E não é verdade que os alentejanos não gostam de trabalhar e querem viver sempre à “sombra de um chaparro” a dormir? E Pinto da Costa não falou várias vezes do Porto e do Norte trabalhador que alimenta os “mouros” de Lisboa para baixo? E em que é que estes “argumentos”, atingindo povos, regiões, histórias diferenciadas, são diferentes dos que a extrema-direita dá contra os “pretos”, os “árabes”, e os “imigrantes”, que também não querem trabalhar, mas viver da segurança social e das regalias dos países mais ricos, em detrimento dos seus habitantes “nacionais”?
Cavaco Silva e Passos Coelho falaram dos “gregos” com o mesmo grau de generalidade e anátema. Como muito dos seus repetidores nos media e nas redes sociais, são as “características” intrínsecas do povo que são atacadas. O que aconteceu na Grécia, nesta versão, é culpa do povo, não dos anteriores governos gregos. Percebe-se, porque o povo votou mal e derrotou o governo preferido por Cavaco Silva e Passos Coelho: o tandem troika-Nova Democracia.
Sim, porque se o PASOK tem culpas no passado, a Grécia era até Janeiro governada por um governo membro do Partido Popular Europeu (de que faz parte Merkel, Rajoy, Passos Coelho e Portas) que foi apoiado pelos partidos no poder na Alemanha, Espanha e Portugal. E mais: foi governado pela troika, em conjunto ou em cima, e se os resultados deixaram a Grécia com a gigantesca dívida que tem, e sem “ter feito o trabalho de casa”, a culpa é de quem? Do Syriza? Silêncio.
E os gregos não querem austeridade, o pecado mortal da Grécia para Cavaco e Passos. Mas o que é que eles tiveram nos últimos anos: despedimentos, falências, encerramentos, corte de serviços fundamentais, cortes na educação, na saúde, na segurança social, uma queda brutal do produto Interno Bruto? De onde é que isto veio, do esbanjamento e da preguiça inata aos gregos? Como é que se chama a isto, senão uma dura, penosa, cega, punitiva austeridade? Na verdade, como Passos Coelho diz com todas as letras: foi pouco, têm ainda que ter mais. Mas o que nem Cavaco nem Passos dizem, é aquilo que é evidente: não resultou, nem resulta, nem resultará. É uma receita errada quer em Portugal, quer na Grécia. Mas era a continuação dessa receita, aquilo a que chamam “cumprir as regras”, que Passos queria para a Grécia, com aquela cegueira que tem os acólitos e que continua mesmo quando os mestres já estão noutra.
Voltando a Klaus, ele disse uma coisa muito interessante, pediu a Cavaco “que não divulgue por cá que vocês têm um défice ainda maior que o nosso”,porque isso iria fazer os checos contestarem as medidas do governo. Uma parte importante da intransigência com os gregos vem de governos acossados, como é o caso do português e do espanhol, que andaram a dizer aos seus povos que não havia alternativa a não ser a política que seguiam.
Ora, a questão não é a de validar o programa do Syriza, ou assinar por baixo de Tsipras e Varufakis, mas a de saber se, no fim de tudo, os gregos têm ganhos de causa ao terem votado como votaram. E se sim, como é que ficam os que tinham para eles a receita de tudo continuar na mesma, votando na Nova Democracia, na obediência à troika, e na política até agora intangível da Alemanha. Esse é que é o mal grego que Cavaco e Passos querem extirpar.
José Pacheco Pereira, in Público de hoje
1 comentário:
Cunhamigo
Estás realmente um ás nas transcrições; esta voltou a ser motivo do meu aplauso (mesmo em Goa com uma perna ao peito) a Pacheco Pereira de quem não sou fã, mas,pelo andar da carruagem ainda serei...
Parabéns a ambos: a ti e ao PP - porra! é Pacheco Pereira...
Abç
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