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Uma estória na primeira pessoa do Henrique Antunes Ferreira, que está publicada no seu blogue A Minha Travessa do Ferreira e que ma dispensou
NA PRIMEIRA PESSOA
Ai a minha mãe!...
Antunes
Ferreira
N
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uma mata cerrada a diferença do dia para a noite são os animais; no
resto tudo é escuridão graduada desde o cinzento carregado até ao preto
tinta-da-china, mas sem tira-linhas. As árvores tapam o sol e tapam a lua, mais
qual? De dia o silêncio assusta; de noite, os uivos, os grasnidos, os piares
assustam também. Será que silêncio significa sossego? Bem pelo contrário. Os
caludas em tom sussurrado atrofiam os homens fardados.
P
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orém isto é quando os militares caminham em patrulha, na chamada
bicha de pirilau ou estão alapados numa emboscada, à espera de quem caia nela –
ou se safe. Aí o capim desempenha o seu próprio papel, actor mudo, sem caixa de
ponto, mas importante. Porém quando segue uma coluna de camiões o caso é bem
diverso. O barulho dos motores mata o psiu, alerta para longe da picada. E
então, quando se constrói uma nova estrada pisando as marcas dos pés que por
ali passaram, nem falar nisso. Buldózeres, cilindros, bidões de asfalto, serras
mecânicas, pás, picaretas, martelos hidráulicos…
N
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ão pode haver silêncio nestes transes. E quando se tem de dormir na
picada, no meio da mata, ainda é mais complicado, nada de cigarros, o morrão é
um excelente objectivo para eles, um
olho aberto, o outro fechado, o brado da sentinela, quem vem lá? O vento no
capim, o grito de um macaco, o zumbido de milhões de mosquitos são tudo motivo
de suspeição: se são os sacanas estamos
fodidos. Então pessoal, ninguém se deixa dormir sem a canhota à mão de semear.
A segurança tem de ser tão eficaz quanto seja possível.
E
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sta é a minha terceira coluna; vou, vamos, a caminho dos Dembos,
dizem os conhecedores que é a pior zona do terrorismo(*) de Angola, mais
precisamente para o Quibaxe para onde levamos material de guerra, alimentos e
até gado vivo para abate. São 48 viaturas civis, interpoladas por outras
militares: três “burros de mato”, os Unimog mais pequenos, dois maiores, dois
jipes e na frente uma GMC da segunda guerra mundial, carregada de sacos cheios
de areia e de pedras, com o fundo reforçado por placas de aço, bem como a
cabina do condutor.
É
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o rebenta-minas, parido pelo
desenrascanço português, que consiste num cilindro de metal com correntes
grossas, daquelas das âncoras dos navios, penduradas, tudo soldado à frente da
viatura pesadíssima na tentativa de prevenir qualquer rebentamento de bomba
enterrada na terra do caminho, traiçoeira. Já vi uma não rebentada, lançada de
avião, 300 quilos bem pesados, com um detonador acoplado que felizmente não…
detonou. Resulta que, quando o camião se desloca, as correntes vão batendo no
solo para detectar e rebentar as possíveis minas ali plantadas por eles, os turras. (*)
C
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ai a noite, caralho não conseguimos chegar ao fortim da fazenda
Maria Fernanda, fartámo-nos do bate-cu nas “carroças”, de afastar uns abatises
que por ali ficaram, de desenterrar camião atolado na lama vermelha, estamos
feitos, temos de dormir na picada. Explicando melhor: eu comando as viaturas
civis; o alferes miliciano atirador Pedro Martins, do Grafanil, comanda as
militares e os soldados da escolta. Confabulamos, pigarreio e aviso a malta que
passamos o breu ali mesmo. Monta-se a segurança e na medida do possível os
camiões tentam formar um círculo à maneira das caravanas onde os brancos se
defendem heroicamente dos sioux e outros peles vermelhas.
S
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entado no estribo da Suzuki de 15 toneladas, rapo da ração de
combate e melancólico abro a caixa de cartão. E logo o senhor Bravo,
proprietário e condutor do camão me pergunta o que estou a fazer. Adriano Bravo
é um tipo muito especial. Uma mina gamou-lhe a viatura que tinha e uma perna, a
direita. Foi para o Alcoitão fazer a recuperação depois de lhe terem colocado
uma artificial. E voltou a conduzir o novo camião, o Suzuki, porque esta é a
minha vida e sou como os gatos, não tenho uma, tenho sete…
D
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eixe-se de merdas, você vai comer connosco e dê a puta da ração ao
preto que vai sentado no cimo da carga. Guerra extraordinária, em que os homens
de um lado e do outro disparam com tudo o que têm à mão e, raio de prática,
vão-se insultando enquanto atiram. Vai na tua terra soldado cabrão, vai meter
no cu do Salazar na cona da puta da tua mãe, berram do capim. Vai levar na
peida macaco, se te apanho corto-te os colhões, nunca mais tens filhos mesmo
depois de morto. E assim.
A
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banco com os condutores, comemos postas de pescada do Cabo
deliciosamente fritas, lombo de porco
assado já vindo de casa, batatinhas cozidas na hora, reinam os fogareiros de
petróleo, guardadas as chamas por tabiques de contraplacado já trazidas de
Luanda para o efeito. E tudo regado com um vinho de estalo, da colheita do
Crispim que é de Viseu e rebatido com uma bagaceira do mesmo dono. Um banquete
na picada, uma quase orgia nocturna, umas anedotas picantes, sabem aquela do
padre e da freira? Não sabem, eu conto. E ri-se baixinho, mas ri-se. No
entanto, porra, faltam as fêmeas.
N
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o dia seguinte retomamos a marcha. Mais uma horitas e estamos a
chegar se não houver merda. O Moreira da bazuca benze-se, pelo sim, pelo não.
Há! O pessoal dum Unimog ia mas mais ou menos descontraído, já tinham passado o
rebenta-minas e o camião civil onde eu ia e outro, um White curiosamente branco
e, de repente, buuuummm!!! Mina controlada à distância por cordão de disparo,
com certeza. Paneleiros!!!! Assassinos!!! Filhos de uma carrada de
putas!!!!!!!!
P
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ara espanto de todos, depois de tiros a esmo para a mata ou para o
ar, não se vê ninguém, ficaram apenas três feridos. O maqueiro Lingrinhas já
começou a tratar deles e, de supetão, ó Henrique! Na mata não se diz a patente,
não ande por aí o Mata-alferes. Corro. Esparramado no chão, envolto em
ligaduras, adesivos, pensos individuais do combatente está o Periquito,
alentejano de Évora Monte, 22 anos, solteiro mas com dois filhos e um coto a
jorrar sangue por troca com a perna esquerda.
O Lingrinhas faz-lhe um garrote com um cinturão bem apertado, mas…
Henrique, o gajo morre-nos. Quim liga o rádio pede o heli para o evacuar!
Foda-se Henrique, o cabrão não quer funcionar!
N
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ão sei se alguma vez alguém morreu nos vossos braços. Eu sei. Eu
sei o que custa, porque, garrotado, cheio de morfina, o Periquito engalfinhou a
sua mão na minha, enquanto, sentado ao lado dele, eu o amparava, passando-lhe o
meu braço sobre os ombros dele. E o sangue a empapar as ligaduras. E ele a
gemer, ai a minha mãe!!... ai a minha mãe!... ai a minha mãe… Ai a minhaaa… Os
olhos já vidrados. Por mais anos que viva nunca me esquecerei. Ai! O
helicóptero aterra meia hora depois, foi rápido, mas não chegou a tempo.
Metem-no lá numa padiola. E foi um cadáver que transportou de volta a Luanda.
P
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orém, a estória vivida não fica aqui. O Zagalo, vizinho do
Periquito em Évora, quando para ali se deslocaram por terem sido mobilizados
abre-se comigo já no quartel: meu alferes há duas merdas estranhas; a primeira
é que o moço estava amigado com uma gaiata a quem tirara os tampos quando ela
tinha 16 anos; daí o casal de filhos, a miúda com oito anos e o puto com seis,
logo ele tinha podido meter o amparo de família e passar à peluda, mas não fez
ninguém sabe porquê, ele nunca se confessou à malta. A segunda ainda me mete mais macaquinhos no
sótão: a mãe dele já tinha falecido vai para três anos.
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