Maria da Assunção Esteves, presidente da Assembleia da República, retrata bem o grau de indigência cívica e cultural da maior parte da actual geração de políticos.
A indigência cívica pode ser confirmada com uma consulta à Wikipédia: ela, em vez de receber o salário do lugar que efectivamente ocupa, correspondente à segunda posição na hierarquia do Estado, optou por receber uma pensão, relativa ao lugar que ocupou durante dez anos no Tribunal Constitucional, no valor de 7255 euros, a que acrescem 2133 euros de ajudas de custo. Reformou-se aos 41 anos! A situação dela e de outros políticos que beneficiam de privilégios inexplicáveis foi bem sumariada pelo capitão Salgueiro Maia, um dos protagonistas maiores do 25 de Abril, quando, numa entrevista dada em 1991, pouco antes de falecer, declarou: “Os nossos políticos têm uma grande preocupação em serem bem reformados e uma preocupação nula em serem bem formados.”
Da indigência cultural, que contrasta com a formação recebida na Faculdade de Direito de Lisboa, há exemplos recentes que têm sido circulado amplamente: em plena Presidência da Assembleia, perante uma manifestação do público, fez uma citação de Simone de Beauvoir que afinal era apócrifa (“Não podemos deixar que os nossos carrascos nos criem maus costumes”)e lançou aos microfones da Rádio Renascença um chorrilho de frases abstrusas, com neologismos da sua lavra (“O meu medo é o do inconseguimento... o inconseguimento de eu estar num centro de decisão fundamental a que possa corresponder uma espécie de nível social frustracional derivado da crise”). O primeiro exemplo mostra que Assunção Esteves, além de recordar mal as leituras que faz, não tem a sensibilidade exigível a quem está investido em funções de soberania nestes tempos difíceis. Se a assistência nas galerias exprime o seu descontentamento, esperava-se que normalizasse a situação com tranquila autoridade, em vez de acicatar os ânimos, como fez ao sugerir que os manifestantes, gente desesperada com a crise, eram torcionários nazis (Beauvoir referia-se, na passagem erradamente citada, à ocupação da França pelas tropas de Hitler). O segundo exemplo é tão mau como o primeiro. Quando a rádio pediu à presidente da Assembleia uma declaração de Ano Novo, seria de esperar que as suas palavras fossem não de medo e derrota, ainda por cima numa expressão esbugalhada, mas sim de coragem e determinação. Podemos, bondosamente, pensar que Assunção Esteves estava a tentar dar um ar de modéstia. Mas o que fica da afirmação sobre o “inconseguimento” é uma declaração de incapacidade por parte de um alto responsável político. É inevitável o contraste com os capitães de Abril. Alguém imagina Salgueiro Maia a sair de Santarém com o “medo do inconseguimento”?
Mas o pior ainda estava para vir. Há dias, a presidente surgiu nas televisões declarando, de forma estranhamente agressiva, que a não comparência dos capitães de Abril na cerimónia oficial de comemoração dos 40 anos do 25 de Abril era um "problema deles". Mesmo que não concordasse com a eventual pretensão à palavra dos autores materiais do 25 de Abril, há formas mais elegantes de se expressar do que essa, mais própria de conversa de rua. A sua missão deveria ser prestigiar a Assembleia e não o contrário. Eleita pelos representantes do povo para dirigir o Parlamento, deveria fazê-lo com a necessária gravitas, procurando representar todos os portugueses. Podia ter reforçado o convite aos militares para estarem presentes. Podia ter explicado que ali só falavam pessoas eleitas. Podia até ter dito que não ia adiantar mais nada sobre o assunto. Mas não. Na Casa da Democracia disse, com o fundo de uma campainha, o que ficou registado. Não podemos deixar de concluir que Assunção Esteves não está, de facto, à altura do lugar que ocupa. O seu nome, que surgiu a Passos Coelho como solução de recurso após a dupla derrota de Fernando Nobre, não está definitivamente a par de nomes da nossa democracia como Vitor Crespo, Barbosa de Melo ou Mota Amaral, só para referir figuras do PSD que a antecederam no cargo.
Para que fique claro, não quero defender o direito de o tenente-coronel Vasco Lourenço falar do alto da tribuna parlamentar no próximo dia 25 de Abril. Percebo que a resposta dos deputados seja negativa, depois de ele, à porta da Aula Magna, ter dito sobre o Governo eleito: “Eles ou saem enquanto têm tempo ou qualquer dia... vão ser corridos à paulada, se não for pior." Uma coisa é estar insatisfeito com o Governo, como eu estou e tanta gente está, outra é corrê-lo “à paulada” e não a votos. Mas vivemos num país livre e o presidente de uma associação privada pode dizer os disparates que entender. À presidente da Assembleia da República, exige-se-lhe, porém, contenção. Problema deles? É, sobretudo, um problema nosso, enquanto Assunção Esteves estiver em São Bento.
Carlos Fiolhais, in Público de hoje
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