terça-feira, 11 de março de 2014

CONTRIBUTOS EXTERNOS


Mais uma crónica do Henrique Antunes Ferreira, o da Travessa, que continua nas Índias



GRALHAS SEM GRALHAS

Uma rua
com pedigree

Antunes Ferreira
Deu borem dis dium. Ou seja, bom dia, em concani.

Na minha casa ouve-se o mar, as ondas marulhando a uns duzentos metros, ou seja quase aqui à porta. No quintal mesmo ao lado cresce um coqueiro – olha que novidade – uma árvore que dá pão, uma pãozeira, portanto, uma mangueira e muitas buganvílias. Nuns trezentos metros da minha rua, caso curioso, além dos Kamat Mantion, onde moro, existem três cabeleireiros, um dos quais unissexo, dois restaurantes, um bar, três ourives, quatro agências bancárias, um consultório médico e uma farmácia. Só falta a loja do caju. Mas, não se pode ter tudo. Para todos os gostos, enfim. Frutas pão e mangas ainda não estão prontas como aqui se diz, em vez do maduras que nós usamos em Portugal.

A propósito, abro aqui uma parentética para dar conta de episódio ocorrido em Luanda, quando estávamos por lá. A Raquel tinha tido os partos do Miguel e do Paulo em Lisboa, na clínica de São Miguel, sob o cuidado atento do Prof. Castro Caldas. Na capital angolana onde tínhamos produzido o terceiro descendente ou terceira, na altura não havia ecografias, quase findos os nove meses habituais, fomos no carrito que comprara, um pequenino Mitsubichi Colt (anos de colonialismo já me tinham permitido entrar pelo multimilionaralismo)  para fazer uma análise da situação.
Ainda não estava pronto...

O local onde viria ao Mundo o nascituro, era a “Casa de Saúde” do SNECIPA, (Sindicato Nacional dos Empregados do Comércio e Indústria da Província de Angola). Subiu a minha consorte ao primeiro andar para mirar a enfermaria, eu fiquei no minúsculo boguinhas acompanhado dos dois primeiros infantes: o Miguel com cinco anos e o Paulo com três.

O primogénito era desde sempre o mais crédulo e ingénuo, o segundo era o contrário. E foi o Miguel que me perguntou, ó Pai, onde foi a mãe?, ao que respondi (estávamos ainda nos anos sessenta) que a mãe tinha ido ao local onde iria buscar o mano. Silêncio. Desceu a Raquel com umas trombas elefantinas. É mau? Perguntei-lhe. É péssimo. Nisto, o Miguel, ó mãe então o mano? E o Paulo, galharda e convictamente, não vês que ele ainda não estava pronto!!! Fecho o parêntesis.
Pós graduação em Comunicação
Voltando à minha rua; é por ela que se chega à praia de Miramar, daí os murmúrios do  Índico. Passa-se pelo colégio Dhempé, antes Dempó, uma enorme instituição mandada construir pelo magnata do mesmo nome. Um pormenor, tem estudos de Comunicação e Jornalismo. No fundo da rua –  aqui é road em vez destreet – está plantado um templo hindu, moderno, onde para as pessoas entrarem têm de se descalçar. O mesmo acontece nos consultórios de médicos hindus, escritórios de advogados e outros. Fui ao estaminé do Dr. Ashish Surlenkar onde ouvi uma estória para dar que pensar, eu conto, o clínico é uns anos mais velho do que a Raquel e conversou com[HAF1] igo num Português escorreito.

Tinha lá ido por via de um problemazito intestinal, nada de grave, e depois demos em conversar e fiquei sabendo que ele completara o curso na Escola Médica de Goa e pretendia depois ir para Lisboa fazer uma série de cadeiras para a equiparação, “quando aconteceu aquilo, a libertação, como aqui dizem…” Pasmei. Da boca de um hindu ouvir uma tal frase, 53 anos depois dos acontecimentos de Dezembro de 61, deixou-me de boca aberta, mas logo a fechei, e começámos a falar do Benfica, que ele continua a ser, e eu, como bom sportinguista retorqui-lhe, espere pelo fim do campeonato, rimo-nos – e não me cobrou a consulta aliás seria caríssima, 2,2 €…
Uma rua muito catita
Do outro lado da marginal que une a capital a Miramar, há mais um restaurante, o Foodland (do Turismo de Goa) e também hotel, uma pastelaria, a Canapé, grupo hoteleiro de grande dimensão que existe por todo o estado. É, por conseguinte, uma rua muito catita, onde os pregões das peixeiras, vendedoras de hortaliças, vendedores de baldes e outras alfaias de plástico, se misturam com as buzinas da bicicleta do padeiro e do amola tesouras e navalhas, ambas diferente no tom e no som… O primeiro, vejam lá, começou a entregar o pão à nossa porta quando viu a minha mulher com um pé elástico. Gentil, o homem. Gentil, o procedimento.

É, como já compreenderam, uma rua com pedigree. Embora com poucos passeios, o que em Goa é absolutamente natural, muitos dos que existem são os que sobrevivem às monções, e nos quais é mais perigoso  peatonar do que na beira da road, vincando olimpicamente o destemor do cidadão e confiando na boa vontade e na falta de pontaria dos condutores. Estes, além disso, são verdadeiros malabaristas, funâmbulos num tráfego diabólico e ao som triunfal das buzinas de todas as espécies, tonalidades, decibéis et aliut. Há passadeiras, é certo, mas ninguém lhes liga peva; pouco falta para multar os temerosos que as tentem utilizar para atravessar uma qualquer road.

Porquê uma tal opção galharda e valente? Os suspeitos passeios, esses sim, são um perigo constante, armadilhados, traiçoeiros, esventrados. As monções têm as costas largas. 
A árvore do pão
Durante elas  as chuvas são permanentes, ou quase, de acordo com fontes fidedignas e presenciais e as alturas das águas atingem por vezes os  joelhos das pessoas; donde os lancis são altíssimos, onde alpinistas conceituados teriam o maior êxito. E as sarjetas, entupidas até mais não, recusam-se honestamente a escoar o OH2 pluviométrico e sujo. Uma Lisboa para pior… O Carlos Medina Ribeiro gastaria a objectiva.

Fico a imaginar a saga trágico-líquida  dos condutores dos  riquexós durante a estação chuvosa. Penso até que veículos tão prestimosos deverão nessas ocasiões possuir como equipamento adicional  - boias. Para flutuar, está visto; mas também de salvação. A propósito, no princípio da minha rua há uma praça desses triciclos pretos e amarelos, fabricados por uma tal Bajaj que deve ter resultados espampanantes, a julgar pela miríade de tais engenhocas rodoviárias que quais enxames se espalham por todo este imenso subcontinente, Goa incluída, como é óbvio. O CEO dessa frota já nos conhece e apenas chegamos, faz-nos sinal para aguardarmos do nosso lado, que o riquexó mais próximo atravessa a road e vem tomar-nos como passageiros.
Adicionar legenda
E até já não é preciso acertar previamente o valor da corrida, prática costumeira: daqui a Pangim são setenta rupias. E se o digno condutor é goês e ouve que a passageira é também patrícia, de Raia, então, sessenta. Já estou convencido de que, perante esta prática deve haver uma maçonaria dos goeses –de que, aliás, suspeitava. Mas, claro, não o digo, guardo a convicção no mais recôndito de mim e ando de riquexó a preço regional. Sou um pacló, um branco, bem o sei, mas a minha patroa é de Salcete no Sul, gente boa, e o condutor também é daqueles lados, quase vizinho. Não são como os do norte, de Bardez, mas dizem os sulistas
 que deus os criou mas mal fez…

Neste prédio mora uma família de quatro membros 
Na frente da minha casa (que é um apartamento da Susana Velho e que porreiro, como já disse) estão os Bobby Apartments, num segundo andar dos quais vive uma família de pai, mãe, uma filha e um filho. E um pergaminho carregado de rugas, a avó. Mas essa não conta para a estória. O chefe da tribo tem uma vespa, da marca Hero, indiana como o sari. Há-as aos montes (no caso presente aos Gates), de todos os modelos, feitios, cores, e outros. Fazem parte da ciclópica família Motobike, incluindo-se nela motociclos, motorizadas e motos. Para além da Hero, há a Vespa produzida na Índia, a Renault, a Norton e muitas mais.

Há dias, vi-os sair, talvez para encontro familiar ou festa, casamento, baptizado ou aniversário. Funeral, não, faltava a gravata preta. Os quatro na Hero. Já vi seis e dizem-me que chegam a oito para famílias prolíficas e bíblicas. Estes nossos vizinhos são comedidos.

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Fotos do autor; a da gravidez é Google

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