Mais um contributo do Amigo Henrique Antunes Ferreira
A Spielberg case
Por Antunes Ferreira
Eu bem suspeitava que transportava comigo uma segunda derme,
perfeitamente acoplada à pele, talvez mesmo indissociáveis ambas. Especifico: à
minha pele; ou seja à minha
epiderme. A este propósito e antes de me alongar (prometo que me encurtarei),
venha a clássica consulta à Wikipédia. A epiderme (do grego Επιδερμίδα
epi+derme; em cima da pele) é a
camada mais superficial da pele, ou seja, a que está directamente em contacto
com o exterior. É um epitélio escamoso estratificado que actua como
importante barreira do corpo em ambientes inóspitos, protegendo a pele contra
infecções, perdas de calor e outras, nomeadamente em partes mais sensíveis,
contra traumas.
Mas nunca pensei que
essa duplicidade dérmica fosse suficientemente evidente para que outras pessoas
a descortinassem. Como andava enganado? Aqui há uns dias, por obra de amigo
comum, reencontrei o Ilídio Guedes, meu companheiro até à quarta classe (quando
a havia). Daí para a frente nunca mais puséramos os olhos em cima dos outros do
outro e vice-versa. Foi uma alegria, podem crer. Mas, depois, uma ansiedade,
para terminar numa completa desilusão. Palavra puxa palavra, frase puxa frase e
a dada altura, surdiu a clássica… e como vais de amores?
Dado que o autor
confesso da inquirição era (ou fora) da minha inteira confiança, respondi-lhe
que estava casado quase há cinquenta anos, ao que o Guedes me perguntou, com um
ar de espanto afivelado na face, e sempre com a mesma mulher? Perante a minha
anuência, o camarada olhou-me de alto a baixo e desfechou, fala-se muito em study cases, que se dividem em muitas
alíneas, mas o teu caso é realmente como o lince da Malcata, ou seja em vias de
extinção. Visto que eu persistia na imobilidade esbugalhada (característica que
é apanágio do chamado Presidente da República em Belém) Ilídio acrescentou que o meu era um verdadeiro Spielberg case pois eu me aproximava
muito de um dinossauro, mais precisamente do anquilossauro.
Nesta altura da
ocorrência, costumam as autoridades deslocar-se ao local onde ela se verificou.
E esta era precisamente um bom exemplo da presença de agentes devidamente
uniformizados que oportunamente iriam dar, supostamente, conta do que
acontecera face à espinhosa situação de eu, ainda que subtilmente, possuir duas
peles, duas dermes, até mesmo duas cútis. Interrogar-me-iam, por certo, sobre
esse estranho anacronismo.
Entretanto, Guedes
continuava a olhar-me entre o divertido e o admirado, pelo que de imediato me
ocorreu que o sujeito estava a abusar de uma velha camaradagem desde os dois
lugares da mesma carteira do externato Mouzinho da Silveira, isto é, estava a
gozar-me. Tive ganas de lhe citar o Franz Kafka, mas contive-me. Sabia lá se
ele me questionaria de forma acintosa, mas esse gajo joga na Primeira Liga ou
na Segunda? O nome não me é estranho…
Pela minha parte, continuava a matutar na forma como lhe
responderia, se a situação se tornasse numa calamidade. E, mentalmente
equacionei que lhe poderia atirar que quando Gregor Samsa despertou, certa
manhã, de um sonho agitado viu que se transformara, durante o sono, numa
espécie monstruosa de insecto. E acrescentaria que era assim que Kafka inicia a história do
caixeiro-viajante, que numa manhã, ao acordar para o trabalho, vê que durante a
noite se transformara num insecto horrível com um "dorso duro e inúmeras
patas". Estive prestes a despejar no frontispício irónico do Ilídio que
assim era o início da obra chamada “A Metamorfose” da autoria do escritor
checo.
Logo de seguida
continuei a elucubração, relembrando também “A Mosca”, filme que retracta a transformação
repulsiva de um cientista numa enorme mosca, por intermédio de uma máquina de
teletransporte que tinha inventado. As duas estórias juntas, ainda que
separadas por mais de meio século, seriam mais do que suficientes para esmagar
o Guedes. De tal sorte que acabariam as insinuações torpes sobre a suposta
mutação ocorrida sobre mim mesmo. E o homem a dar-lhe, isso nem parece teu, mas
vendo bem essa estória dos cinquenta anos casado sempre com a mesma mulher
leva-me a corrigir a primeira avaliação; na verdade pareces-me mais um
gorgossauro…
Só consegui
responder-lhe com um angustiado – nota-se muito? E ele, a fazer de sério, se
não abrisses a boca, não notaria nada e aproveitou para aditar que por fora, ou
seja, a nível da epiderme, ninguém diria que eu era um sepielberguiano caso, em tradição livre e literal. Convicto de que
não fazia parte de um qualquer Parque Jurássico, suspirei fundo. No entanto,
assoberbado pela dúvida, foi então que me descobri
portador dessa pele elevada ao quadrado, ainda que da mais firme, sincera e
impoluta formação legal, moral e familiar. E assim me mantenho, sem traumas,
graças ao meu epitélio escamoso estratificado.
1 comentário:
É de supor que esse amigo nunca mais apareceu, por causa de eventuais contágios epidérmicos (e não só), digo eu.
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