Ou seja, fazer parte da primeira geração em Portugal que já não tem memória directa da enorme pobreza rural que os seus pais e avós ainda conheceram, que beneficiou do elevador social que foi a educação e o Estado (sim o Estado que, em todos os países democráticos, tem essa função de criar uma classe média… nem que seja para servir de tampão entre os proletários e os milionários. Perguntem ao Bismarck.) e que representa… a única, débil e, pelos vistos, precária modernização de Portugal. Ou, para quem abomina o termo modernização, a primeira geração que acedeu aos padrões de consumo, que a pequena burguesia europeia, a chamada "classe média baixa", já tem há muitos anos. Ficamos a saber que eles são em Portugal os "ricos" (suspeitávamos, por o limiar da riqueza para efeitos de impostos ser 1000 euros) e, pior do que isso, cometerem o pecado mortal de levarem "vida de ricos".
Mas foram mesmo as férias de sombrero feitas com o crédito prestimoso da banca, "faça férias agora pague depois", o verdadeiro problema dessa "riqueza aparente" contra a qual brada? Não, ele sabe que tudo isto foi irrelevante face, por exemplo, ao endividamento que resultou da compra de casa própria, esse sim, um dos ónus actuais mais importantes para as famílias. Mas, apesar da contínua jigajoga que se anda a fazer com o tempo, para trás e para a frente, para legitimar opções do presente, haverá alguém capaz de negar que a opção de comprar a casa era uma decisão racional até ao fim da década de 2000, racional de todos os pontos de vista, até porque não havia a alternativa do aluguer?. E por que razão a culpa é sempre das pessoas e das famílias e o comportamento de bancos e empresas é sempre deixado numa sombra benévola?
A "riqueza" da classe média é o primeiro grande alvo do "ajustamento", mas não é o único. Há outra "riqueza" no alvo, a dos menos pobres dos pobres, a daqueles que dependem de prestações sociais, quase metade dos portugueses, e os que ainda têm emprego e vivem do seu salário. Esta "riqueza" foi a difícil, tímida, demasiado recente (comparada com a Europa) ascensão de uma segurança social, em que ainda a maioria de reformas está abaixo do limiar da pobreza. Esta "riqueza" foi a saúde e a educação, garantidas pelo Estado. A "riqueza" é ter um Estado com obrigações sociais.
A legitimação do ataque a salários, pensões e reformas, do quase confisco administrativo e fiscal do rendimento das pessoas e das famílias, da facilitação do despedimento para criar um exército de mão-de-obra barata, enquadra-se na ideia de que é aí que está a "riqueza aparente" que uma sã economia não pode tolerar, primeiro porque as pessoas consomem mais do que o que devem, depois porque é preciso baixar os salários para o "custo" da mão-de-obra ser "competitivo". Atacar essa "riqueza" inexistente para abrir caminho à absoluta necessidade da pobreza, é um instrumento político, e é uma ideia sobre Portugal e os portugueses.
Por isso, esperem por mais, porque se "o país empobreceu menos do que parece", é porque ele ainda não empobreceu tudo o que podia e devia. E a receita que vem aí é óbvia, é tornar permanente os cortes de salários e pensões, para que o tempo actue todos os dias tornando as pessoas e as famílias insolventes, endividadas perante credores muito mais hostis, incapazes de gerir a sua situação e a sua vida, e os que não podem emigrar ficarem por aí aos caídos ou à porta de qualquer banco alimentar. Sem estes portugueses poderem viver aquilo a que Bento chama com desprezo "vida de ricos" ou aceder a ela, sem esses portugueses restaurarem uma escada social que permita a pobreza não se tornar num gueto, e haver uma classe média que puxe para cima, não há saída para Portugal.
José Pacheco Pereira, in Público de hoje
José Pacheco Pereira, in Público de hoje
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