Mais um contributo do blogue Azul-Canário
Os gatos e a cidade 2
Os gatos e a cidade 2
Três milhões de
degraus
por amor aos
gatos
A causa felina
obriga-a a um duplo desce-sobe diário das Escadas do Barredo, desde casa até à
borda do Douro. Contas por alto, a paixão de vinte anos de Arlete Gomes pelos
gatos, medida em degraus, daria para a imaginar do tamanho de três milhões:
íngremes, dos mais doridos que nas cidades haverá no
mundo.
Fotografia e texto
Augusto Baptista
Fotografia e texto
Augusto Baptista
Arlete Marques Gomes
Ao aproximar-se a hora,
começam a rondar-lhe a casa. São dois. Impacientes, atentos ao mínimo sinal,
sobem, descem, sem se afastarem. Às vezes deitam-se, a olhar a soleira. Um
desiste, vai-se. O outro, paciente, espera. Aprendizado de anos, sabe que não
tardará. A confirmar as expectativas, a porta abre-se, ela sai: devagar,
amparada na canadiana, sacos de plástico com comida a atrapalhar as voltas da
chave.
Sem pressa, gato e Leta,
como na Ribeira do Porto é conhecida Arlete Gomes, descem o íngreme escadório do
Barredo. Dobrada a esquina ao fundo, face ao nicho do Senhor da Boa Fortuna,
afogam-se em novo sobressalto de degraus.
Vencida em poucos passos
a Rua do Barredo, outrora da Mancebia, chão de “mulheres que faziam pelos
homens”, submergem nas sombras de um novo lanço de granito em socalcos. Neste
troço apertado, as casas quase se tocam nas alturas, se ouvirão os segredos,
confidências, ais de amor dos vizinhos, uns dos
outros.
De repente, rente ao
piso, na fresta escura de um portal metálico, é largado o primeiro contributo.
Dentro, sem se darem a ver, dois gatitos e a mãe, me diz Leta, tarrincam o
granulado. Nesse instante – tortuosos, os caminhos da razão – me ocorre o
relato de Wilfred Burchett quando, em tempo de guerrilha no Vietname, mão
furtiva, solidária, lhe garantia mantimento.
No sopé deste trajecto se
abre a Rua da Lada numa espécie de terreiro: bastidores do Douro turístico,
roteiro de melancolias e misérias, retiro de cigarro para o pessoal dos
restaurantes. No ar, um cheiro a fritos, a comida; no alto, a esvoaçar, roupa de
muitas cores dependurada.
Logo à esquerda, num
patamar, Leta se acerca de um buraco na parede. No pavimento, como toalha de
piquenique, estende uma imaculada folha de plástico, desvenda o farnel. Numa
vasilha opalina, verte água. Límpida. Da parede, atraídos pela refeição, pelo
doce das palavras, vão saindo: bem tratados, sem pressa nem atropelo,
civilizadamente, vão saindo os candidatos ao repasto. Hoje falta um, os conta
Leta.
Neste ponto do trajecto,
a assistência é demorada. Tempo de relação com a vizinhança, combina de
entreajudas, conversa de gatos. “Faço isto há vinte anos, todos os dias, pelo
fim da tarde. Dou-lhes latas, secos, granulado, o que o médico mais aconselha. É
uma despesa grande. Comida. Castração: 40 euros cada gata. Vou-me remediando,
sem pedir nada a ninguém.” Mas porquê esta cruzada, tanta caseira? “Dediquei-me.
E, sinceramente, com os gatos, ao contrário do ser humano, não tenho decepções.”
E as pessoas? “Entendem. Admiram-me.”
De novo, pés a caminho
pela Rua dos Canastreiros, entre arcadas sombrias sob o soalho do casario,
desagua na Praça da Ribeira. Tarde de Maio quente, o largo apinha-se de gente a
beber nas esplanadas, guarda-sóis ainda abertos. E há mirones, automóveis,
vendedores, música. O costumeiro, o ruidoso frenesim. Manclitante, Leta, no
reboliço. Para trás, os gatos, que nenhum arrisca a
confusão.
No Cais da Estiva, logo
ali, desce escadas, rumo ao fosso empedrado. E por aquele chão cabisbaixo alonga
a caminhada, até à frente, ao dobrar do muro, quase. Justo ao finar de uma
esplanada que nesse correr há, se queda. Monta arraiais junto à mesa derradeira,
às cadeiras, a um bojudo ferro de amarração de cordame náutico. E a vejo retirar
apetrechos, como atrás fizera, afadigar-se em mudas de
água.
Estranho procedimento,
que nas cercanias, perscrutei, nem sombra de felina
presença.
De repente, rente ao muro
de pedra velha, por uma fenda inesperada, invisível, mete a mão. E fala. Entre
palavras carinhosas que verte para o fundo do buraco, confiante, mete a mão,
solta um punhado de grânulos secos. Outro, outro. No fundo, no negrume da
fissura, movimentos adivinhados: um gato! “É uma gata”, precisa Leta. Conta a
história: “Descobri-a, quando era pequenina. Cresceu. Ficou cheia, consegui
tirá-la, levá-la para castrar. Quando a trouxe, tornou a esconder-se
aqui.”
Aqui, chão turístico a
fervilhar por cima, pulsam dois olhos por baixo, se acolhe nas trevas uma vida,
uma parte de nós e da cidade.
“À noite ainda tenho de
voltar ao Cais” – lamenta Leta. “Há uma que só aparece e vem ter comigo a essa
hora. Não sei onde se esconde.”
De regresso, esta mulher
franzina, reformada, que veste luto duas vezes, pelo homem, pelo filho,
insinua-se pela arcada do Postigo do Carvão, que a espera um peludo comensal,
atravessa o Cais da Ribeira, esgueira-se entre as ruelas fundas do Barredo,
penosa ascensão até casa, sempre a subir até casa, cem degraus que
doem.
Chega extenuada, gatos
atrás, dois ou três. Impertinentes, querem entrar. “Não posso. Já tenho uma,
Joaninha.”
O trajecto solidário
5 comentários:
Alguém avise a senhora que alimentar animais vadios constitui uma contra ordenação passível de ser punida com uma coima bastante simpática...
E quem vai fiscalizar numa zona daquelas? A polícia (rara) anda de carro; os fiscais câmara andam a ver os automóveis (poucos) cujo talão de pagamento está ultrapassado. Só conhecendo a zona....
Belíssimo!
Conheci uma senhora assim que também se preocupa em levar comida aos gatos, mas noutra zona do Porto.
Zorramigo
Ganda cena! Bué da fixe! Tens uma Zorra recheada de Boa Gente com Boa vista... Só um tal AF (que apenas o pudor, o recato e a modéstia me impedem de nomear) é que estraga o ramalhete.
Tenho de mostrar este texto maravilhoso e igualmente as fotos à minha nora/filha N.º 3, a Estela que é doida por gatos & outros felinos caseiros. Vai ficar contentérrima!
Isto porque este trabalho está como o chope estupidamente gelad..., estupendo! Esse malandro escreve muitíssimo óptimo (gosto de inventar palavras e frases, como sabes) e tenho de lhe dar os meus parabéns!
Venham mais!
Abç
Henrique
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