quarta-feira, 20 de agosto de 2014

CONTRIBUTOS EXTERNOS



Texto e fotos de Henrique Antunes Ferreira, copiado, com sua permissão, do blogue A Minha Travessa do Ferreira





(Gravura do "Inferno" de Dante) 

Antunes Ferreira
H
  orror e vómitos assim posso considerar o sentimento misto e repulsivo que se apoderou de mim, face à carnificina que com me deparei.  Ainda hoje, quando recordo o que me surgiu de frente, penso que a minha sanidade mental estava fora do prazo de validade. Comigo tinha outros camaradas de farda cinzenta que abanavam as respectivas cabeças enquanto bramavam não pode ser, não pode ter acontecido, que raio é que aqui ocorreu? Um deles chorava copiosamente, outros limpavam os olhos esbugalhados, aqui e acolá soluçava-se. Eu conto, mas primeiro deixem que me localize.

A
cabado o Curso de Oficiais Milicianos (COM), casei – a guerra colonial andava por perto e candeia que vai à frente alumia duas vezes… - e fui colocado como aspirante a oficial miliciano, para desempenhar a função de agente da Polícia Judiciária Militar no então Regimento de Infantaria 1, na Amadora. Hoje é o Regimento de Comandos, que desempenhou papel fundamental no 25 de Novembro de 1975, sob o comando de Jaime Neves e sobretudo com a direcção de Ramalho Eanes. Porém o que me traz aqui decorre antes do redentor 25 de Abril.

O
 gabinete da Polícia Judiciária Militar (PJM) já existia e ali me instalei. Havia um montão de processos por terminar; ao lado numa outra sala ainda jazia mais papel. Eram os pedidos de amparo de família e dos abonos resultantes da guerra, para além de outros documentos. Resmas do chão até ao tecto, carregadas de pó, apenas com uns corredores enfermiços entre elas. Decidi que me ocuparia delas quando tivesse tempo para isso.
 
Coronel Carrilho
A
presentei-me ao coronel António Augusto Carilho que era o comandante do regimento o qual me alertou para uns “pequenos atrasos” no serviço de justiça; atrasos havia e muitos, pequenos eram apenas força de expressão do coronel, aliás pessoa excelente com que me viria a dar muitíssimo bem. Mais tarde iria encontra-lo já general comandante da Região Militar de Angola. O tenente-coronel Renato Nunes Xavier era um tipo porreiríssimo e excêntrico. Um dia contarei episódios que com ele vivi, ou antes vivemos todos os oficiais.

N
  o dia da minha entrada no gabinete apresentou-se-me o segundo sargento clarinete Ricardo Francisco Alves Vieira. O RI1 tinha uma banda que era considerada a segunda entre as militares, sendo a primeira a da Guarda Nacional Republicana (GNR). O Ricardo, entre uma clave de sol e alguns dó, ré, mi, fá, sol, lá, si era o meu escrivão. Mais, era  um homem magnífico, de quem fiquei amigo. O que se poderia chamar, com pedido de escusas ao Mário Zambujal, um bom malandro.

C
omeçámos uma tarefa ciclópica (expressão mais tarde usada pelo Marcelo Caetano quando chegou a presidente do Conselho, substituindo o cadáver adiado dum tal Salazar). Dar cabo dos processos ainda dentro do prazo, arrumar na cesta secção os prescritos, que eram muitíssimos, e tentar atacar de surpresa os amparos de família. Incomportável para um par de militares, mesmo cheios de vontade de alcançar o objectivo. Daí ter requisitado um cabo miliciano, o que mereceu despacho positivo do comandante. Mas, por força das sucessivas mobilizações para o Ultramar (as colónias) tantos passaram que nem lhe fixei os nomes.

O
s meses iam correndo e a coisa funcionando, de tal modo que o novo comandante que chegara, o coronel Américo Mendoza Frazão, me concedeu mais um louvor, em cima de um outro dado pelo seu antecessor. Assustava-me, no entretanto. Pensava para com os meus botões que, como dizia o Ricardo, ainda seria condecorado com a medalha do Mérito Militar. O que viria a acontecer, publicado na Ordem do Exército. Nada me faltava para ser feliz, castrensemense falando.

T
  al qual estória para crianças, era uma vez um dia que estava um tanto mais animado do que o habitual, fugindo à rotina dos autos de averiguação por coronha de Mauser partida durante a instrução, por faltas a formaturas diversas, por fins-de-semana para além da segunda-feira e outras menores. Mariquices como essas no dizer do Ricardo Francisco Alves Vieira, morador na calçada da Ajuda, escrivão dos mesmos que terminavam pela fórmula sagrada: e lidas as suas declarações as achou conformes e assina juntamente comigo e com o escrivão deste auto.
Actos contra natura


D
ecorria uma averiguação que daria por certo auto de corpo de delito, a que a soldadesca chamava auto de copo de litro. Um soldado fora acusado de praticar actos contra natura com um cabo RD, ou seja readmitido. Quemetera o chico também de acordo com os recrutas mais espertalhões e até pelos menos. Linguagem de caserna…  O assunto era escabroso e tinha de ser tratado com pinças. O RDM, Regulamento da Disciplina Militar, seria insuficiente para tal procedimento que, aliás os dois intervenientes juravam pela saúde das mães deles que não tinham praticado qualquer falta e eram até muito homens.  Donde Código Militar.

R
icardo esfregava as mãos de contente, sem descurar a escrevinhadela nas folhas azuis, obviamente. Paneleirices, meu aspirante, paneleirices, se calhar para fugirem à mobilização os pulhas são capazes de tudo, mas não me parece invenção. Além do mais havia testemunhas, eles tinham sido apanhados à noite na caserna pelo oficial de dia. Designação que sempre me deixou perplexo. Oficial de dia uma porra; oficial de noite é que devia ser, pois um gajo tinha de supostamente ficar acordado para ver se o inimigo atacaria entre a meia-noite e a madrugada.

E
stupros, esses, excitavam o eficiente escrivão/clarinete. Tentara por diversas vezes que eu o autorizasse a assistir aos exames se sanidade das pretensas desvirguladas. Nada feito, eu respondia-lhe sempre que aquilo não era o da Joana, tratava-se de coisa séria,
Era coisa séria
só médicos e o oficial da PJM se encontravam no local da avaliação dos estragos nos hímenes das pequenas, que para o efeito eram divididos como um mostrador de relógio, do que resultava o relatório: desflorada às dezasseis e vinte, ou hímen complacente não se verificam perfurações, ou mais raramente, virgindade nos conformes.

E
is senão quando entra pelo gabinete sem bater à porta o sargento-correeiro Correia, ai meu aspirante, que desgraça, que desgraça meu aspirante! Tem de ir lá já! O sorjanão era um jovem, bem pelo contrário, e aquela exaltação tinha deter um motivo grave, ou até gravíssimo. O nosso major Mário Manuel Martins Machado( a quem a caserna chamava o pentóxido da merda – cinco Ms: M de major e mais quatro correspondentes ao nome do sujeito) já tem o jipe preparado e quer que o meu aspirante, como oficial de Justiça o acompanhe.

C
orreia, foda-se, mas ir aonde? – explique-se homem. E ele, com as mãos enclavinhadas, torcidas e um esgar de susto na face barbeada, à serra da Carregueira! Estalou lá um reboliço do caralho! Interrompi a audição do oficial de dia e seguido do Ricardo corri para o jipe. O major espumava, explodia, vamos embora, e chicoteava o condutor. Tens a sirene? Então põe-na a apitar e voa para o campo de tiro. Chegava o alferes médico Oliveira e Costa e o sargento enfermeiro Rodrigues. Saltaram para a viatura e ala que s faz tarde!
O "Inferno" de Dante


O
 Inferno de Dante esperava-nos. Em frente à carreira de tiro de espingarda e pistola-metralhadora havia gente empapada de sangue, espalhada pelo terreiro que ali existia, ele próprio um mar vermelho, um cheiro intensíssimo a carne queimada, esturrada, à mistura com cinzas e restos de fardamentos e correias. No meio daquela sanguineira, daquela amálgama de morte, pude ver (juro pelos meus mais queridos que é verdade!) um cérebro a palpitar! Saído da sua caixa craniana que estaria sabe-se lá onde, era uma espécie de resquício de uma vida jovem cortada cerce.  

A
o fundo o restante pessoal, uns duzentos e tantos homens, duas companhias, miravam de boca aberta a cena maquiavélica. Os oficiais impediam-nos de avançar, uns e outros não sabendo o que teria acontecido. Mais ou menos recomposto do impacto tremendo, corri para a secretaria do campo  de tiro, seguido pelo Ricardo: Entretanto chegavam mais viaturas do RI1. Consegui articular, desenrolando a língua, que houvera uma explosão enorme e que pedissem socorros de médicos e enfermeiros de outras unidades. Ao meu lado o escrivão/clarinete conseguira falar por rádio com o Hospital Militar e aos berros fazia o mesmo alerta.

M
achado coçava a cabeça, aliás com pouco cabelo, e meio atarantado seguia a nossa actuação, desesperada. Excelente, rapazes, excelente. Chegavam o comandante e o seu segundo, tenente-coronel Renato Nunes Xavier, mas que desgraça, isto é um massacre, teria sido mina antipessoal? Onde estava o tenente Mendes, oficial de tiro? Foram-no chamar e encontraram-no sentado na bancada de onde se disparava, as mãos na fronte, chorando copiosamente, a culpa foi minha, o culpado disto sou eu, vão para a puta que os pariu, que se fodam os comandos!

No campo de tiro da Serra da Carregueira

E
nquanto isso Oliveira e Costa e os outros médicos que também tinham acorrido ao apelo, juntamente com os enfermeiros tentavam reanimar alguns dos que jaziam por terra. Injectavam-lhes soro, inundavam-nos de plasma sanguíneo, limpavam-lhes as feridas, reinavam o adesivo e as ligaduras, o mercurocromo, a tintura de iodo, os antibióticos e os analgésicos. Os mais destroçados eram enfiados nas ambulâncias que rumavam sirenando para o Hospital Militar e para os hospitais civis. Foram onze, mas alguns não aguentaram. 

M
endes aceitara que o levassem junto do comandante e comitiva, conseguira parar as lágrimas e os soluços, apenas fungava e assoava-se. Ele também não sabia o que acontecera. Seria preciso averiguar a origem da chacina. E olhava para mim, como se eu fosse um anjo salvador, o da guarda falhara. Estávamos nisto quando apareceu o Ricardo, acompanhado por um recruta de farda esfarrapada e queimada, com a cabeça ligada que fora um dos que tinham sobrevivido àquela matança. Inquirido, começou por soltar uns ais e confessou que vira o que tinha ocorrido.

O
s mortos e os restos de outros foram carregados numa camioneta com toldo. Para que não se visse a carga humana sem vida. E o restante pessoal já estava em formatura, oficiais à frente, sargentos e cabos milicianos enquadrando os pelotões que também se enfiaram em viaturas diversas, GMC da segunda guerra, Matadores da mesma proveniência, já naquela altura os nossos aliados tinham proibido o fornecimento de armas e material para atropa que lutava no que em Portugal era chamada a guerra no Ultramar e outros países e até a ONU corrigiam para guerra colonial.
A guerra colonial


C
om uma ou outra designação os combates custavam muito dinheiro para além das vítimas mortais, dos estropiados, dos afectados psicológica e psiquicamente. Começava então o descalabro das finanças de Portugal, crescia desmesuradamente o défice, as armas compradas no mercado negro, as munições, as viaturas Unimog e Berliet, os aviões Fiat, tudo custava montanhas de escudos transformados em divisas estrangeiras que os “bondosos” vendedores e os “solícitos” intermediários só aceitavam assim. As guerras têm sempre os seus “beneméritos” abastecedores. São eles que ganham com elas, são eles os vencedores.

(Continua quando Deus quiser...)

2 comentários:

Kim disse...

Um belo texto sobre um assunto que tem sido varrido para debaixo do tapete.

500 disse...

Foi isso que comentei no blogue original.