domingo, 28 de julho de 2013

O AZUL-CANÁRIO NA ZORRA

Mais um gamanço, com a devida autorização do autor (blogue Azul-Canário)



Os gatos e a cidade

O Boneco de Maria
Falar de gatos é também falar da cidade. E dos donos, se dono gato consente. Boneco, gato branco do Cais do Ouro – o Porto rente à foz do rio, olhos no Cais da Afurada – abre o tema. A história conta-a Maria de Lurdes na primeira pessoa, 75 anos, comerciante desde os oito, filha de pescador, mulher sábia, solidária, vida feita de luz e sombras, plena de medos, anjos, profetas, pássaros. E gatos.

Texto e fotografia Augusto Baptista



Chama-se Boneco, tenho-o há 10 anos. Foi apanhado no meio do rio, pequenito. Veio de cima a correr, avançou os muros do cais e, frente à prancha, quando viu que o queriam apanhar, saltou. Chegou ao meio da corrente, já ia.
Andava então um senhor, com um barco destes pequenos, que por sinal já faleceu, gritei para ele o salvar. Apanhou-o e trouxe-mo. Botei-o num caixotinho, tinha de ir ao veterinário, estava muito frágil, cheio de lama, molhado, fui buscar uma toalha. Enquanto fui, fugiu-me para dentro do barraco, escondeu-se. Dei-lhe comida, não sei se doze se quinze dias, leite, água. Ele não comeu, estava cheio de trauma,  qualquer coisa que apanhou lá em cima, ou cão, ou esteve metido nalgum motor de carro.
Eu consumida, não comia, não aparecia. Ao fim desse tempo, começou a aparecer. Via-o distraído botava-lhe a mão, fugia, deixava-o ir. Depois começou a comer. Tornava-lhe a pôr a mão, tornava a fugir. Até que se acarinhou a mim e hoje não vê outra coisa. Se um dia eu lhe faltar, morre.
Assim se passaram 10 anos.
Já esteve muito mal. Se não estivesse nas minhas mãos, tinha morrido. Há cinco anos deu-lhe a pedra no rim, na bexiga. Era um domingo, eu sem saber se havia algum veterinário de serviço.
Apareceu então aqui um senhor e perguntei-lhe se conhecia algum veterinário que trabalhasse ao domingo. Disse conheço e que me levava. Fui com o senhor. A médica disse que ele tinha de ficar lá um dia. Chegou ao dia, era outro dia, e outro dia. Que se segue, já ia em oito dias. Entendi que ela estava a comer, ou queria comer. Como me viu muito agarrada ao animal e o animal a mim, queria tirar proveito. Levou-me, naqueles sete ou oito dias, trezentos e tal euros. E queria que ele ficasse lá mais um mês, para operá-lo. Eu não tinha possibilidades e disse Oh senhora doutora, eu sou uma pessoa reformada, não sou rica. É por isso que morrem muitos animais, levam mais dinheiro por tratá-los do que à gente. Fui buscá-lo.
Quando o animal me viu, agarra-se a mim como um bebé, encosta a cabeça aqui no peito, miau, miau, aos gritos a mim, como quem leva-me. Se havia eu de lhe fazer carinho, ele é que me fazia a mim, com as unhinhas fechadas, a fazer-me carinho na cara.
Passou aqui, era nas festas do S. Pedro, nas marés vivas, passou aqui um senhor, viu o bichinho muito mal. O que é que ele tem? E eu disse Está muito doente, passou-se isto assim, assim... E o senhor Olhe, eu tive o mesmo problema, e o que me safou foi um medicamento de uma ervanária. E eu disse-lhe O senhor se soubesse o nome era um grande favor que me fazia, eu tenho amor aos animais, dou de comer às pombas, dou de comer a tudo, sou pobre e deixo de comer para dar aos animais, já tenho tirado da boca para lhes dar. Então ele disse Não sei se dá para animal. E eu Se estudam nos animais para nos tratar a nós, se não fizer bem, mal também não vai fazer… Ele deu-me o nome do produto e eu fui comprar. Com catorze euros, por Deus, que são sete contos, safei-o.
Foi habituado aqui, sempre à minha beira. De noite vem ter comigo, olha para os meus olhos a ver se estão fechados ou abertos. Eu faço que não estou a ver, e ele lambe-me as mãos, o cabelo, para eu não dormir, pega nestas duas patinhas, encolhe, até treme com medo de me magoar, faz-me carícias na cara.
É como se fosse da família. É a minha família. Já tem entrado por aqui a cheia não sei quantas vezes, já chegaram a vir os bombeiros sapadores me buscar, não o largo. Nem a ele, nem a uma cadelinha com vinte e tal anos, nem a uma outra gata que tenho. Já tive mais, tinha-os ali atrás, mas quando era a cheia que andava por aqui, ia buscá-los. Cheguei a dormir com eles em cima do balcão.
Tristezas, que agora que o Porto tirou o campeonato, ele anda contente. Um senhor ofereceu-lhe uma coleira e, outro, um cordão azul e o apito. Não são portistas, são do Benfica. Sabem que eu gosto do Porto, deram isto ao gato.

Filha do mar
Trabalho desde os oito anos. A minha mãe teve doze filhos. Eu era a mais velha, criei-os a todos. Ela saía de manhã para ir trabalhar, para ajudar o meu pai que era pescador, no tempo da guerra, no tempo em que não havia pão, no tempo do racionamento.
Com oito anos andava já carregadinha pelas rua a pregoar. E nunca enriqueci. Andava a vender peixe. Vendi de tudo: martelinhos,  manjericos, meias para senhora, caldo verde, sardinha assada, ovos de cheiro. Ia e vinha a pé, no vento e no frio, para ganhar algum e ajudar a criar os meus irmãos. E o que era o alimento deles? Água fervida com  açúcar, e um bico de borracha, quando choravam, que eram de muito alimento. Eu achava um pano, fazia-lhe uma maminha de açúcar para se calarem até a minha mãe chegar e lhes dar o peito. Passei muitos trabalhos. E vinha o carro da Câmara, uma vez por mês nesse tempo, lavar e desinfectar as casas com creolina, por causa das febres tifóides. Eu por acaso nunca tive, mas a minha irmã a seguir teve, esteve internada no Goelas de Pau.
Tanta fome.
Nunca tive um brinquedo. Com dezoito anos, por aí, andava uma senhora a vender umas rifas pelo Natal para uma boneca. Comprei uma rifa e a boneca saiu-me. Dei-a a uma menina que nunca teve brinquedos, como eu.
O meu pai era pescador. Para trazer meia dúzia de sardinhas para dar aos filhos tinham de ser amanhadas e escamadas e com o rabo tirado. Não deixavam passar na lota do peixe, estavam guardas nos portões. Só arranjadas. Uma ocasião, pelo Natal, eles recebiam à semana, apanharam um peixito e ganharam alguma coisa. A consoada era chicharros salgados, escalados, e batatas, era uma piosca uma roleta, pequenina, o nosso entretimento na noite de Natal e era meia dúzia de castanhas cozidas e meia dúzia de figos. A gente nem comia ao meio-dia, que era para comer muito à noite.
Nessa semana o meu pai comprou-nos uns soquinhos, uns para mim, outros para a minha irmã. Eram de madeira e, em cima, tinham um laço preto, colado. Ofereceu-nos aquilo no Natal, que eu nunca tive calçado, andava descalça. E pagavam-se multas. Para eu andar a vender, ia às lixeiras aproveitar o calçado que não tinha nada por baixo, para não ser autuada.
E então deu-nos os soquinhos, nós comemos os chicharros salgados, com couves e batatas, jogámos à piosca, era às castanhas e figos, e lembrei-me, eu e a minha irmã, que nem havia fogão, era uma coisa de pedra com lenha, uma cinza que estava ali, vamos botar os soquinhos na chaminé para o Menino Jesus nos trazer uma prenda. A gente ouvia que era só para os ricos que o Menino Jesus trazia prendas,  mas éramos inocentes, e então botámos.
O meu pai que Deus tem, sem ter um brinquedo para dar aos filhos ali nos soquinhos, pegou numa agulha com linhas, fez um cordão de castanhas e figos e botou-os em cima. Ao outro dia quando acordámos, a primeira coisa que nos lembrámos foi de ver o que o Menino Jesus nos trouxe. Quando chegámos à chaminé vimos os soquinhos com aquele cordão, ficámos tão alegres. Eu andava na rua com os socos, cheia de vaidade. A nossa inocência, com meia dúzia de figos e meia dúzia de castanhas em cima dos socos.
Eu vou dizer mais uma do meu defunto pai. Quando ele estava para seguir o caminho dele, como nós temos de seguir o nosso, virou-se para mim e disse Tanto trabalhei, para morrer pobre. As palavras que eu dei ao meu falecido pai foram assim O dinheiro, meu pai, não vale nada, você foi o melhor pai do mundo. Ele começou com os olhinhos a olhar e, passado pouco tempo, foi.


Entre um anjo e um profeta
Aqui há dois anos ou mais, estava eu aqui sentada, perto da meia-noite bateram-me à porta, perguntei quem era. Responderam-me, mas como não percebi, levantei-me como se fosse meio-dia e fui abrir. E o que é que eu vi? Um velhinho, barbas muito grandes, com uma bengala, e disse-me Não tem por aí um bocado de pão, que eu venho de fazer uma longa viagem, queria-me encostar a descansar. Fiquei muito aflita, queria dar o melhor, comida quente, comida boa, não tinha. Fiz umas sandes com chouriço às rodelas e dei ao senhor. E ele disse-me Agora não tem uma pinga de água por favor que me dê? Não, vou-lhe dar vinho num pacotinho para o senhor beber. Eu não queria vinho. Então nem vai beber vinho nem água, vou dar-lhe uns sumos. O senhor foi à vida dele e até hoje nunca mais o vi. Foi por acaso? Com tanta casa aberta, tanta luz, e vir aqui a este fundão, que só existia eu neste barraco, que é um ermo, foi por acaso? Não posso dizer quem era, mas só sei que a conversar com um senhor ele me disse Nunca mais o viu, nunca mais o vai ver, era um profeta.
Também não é por acaso que quando eu tive uma embolia pulmonar e estive internada no Santo António, uma noite, estavam as luzes apagadas, tudo em silêncio, eu com os olhos fechados, mas acordada, no meu juízo perfeito como estou agora, senti que estava ali alguma coisa à minha beira. Abri os olhos. Aos pés da minha cama era assim um nevoeiro, e, por trás do nevoeiro, uma imagem. Não sei se era A, se era B, se era quê, não sei quem era. Mal abri os olhos e vi, aquilo foi-se. Para mim, pelo símbolo que eu vi, posso estar enganada, para mim era o anjo da minha guarda que estava ali a tomar conta de mim.



Sempre fui humana
Vem aqui tudo parar. Quando as patas estão com os ovos, às duas e três da manhã já me tenho levantado para lhes dar comida. Que elas chamam por mim. Já me conhecem. As patas dormem em cima das pedras. E anda aí também um ganso-pato. Eu chamo por ele, para lhe dar de comer e ele vem ao meu chamar. E há uma gaivota que só vem de noite, chega, olha para mim, à espera que eu lhe dê de comer. Eu guardo sempre qualquer coisa para lhe dar. Aqui há tempos, não pude ir logo, cheguei e ela estava pousada num barco. Chamei-a Oh pequenina então tu não vens comer? Ela levanta e vem ter comigo. Andou também aí um pato mandarim. É do feitio de um garnizé, é um garnizé direitinho. É produzido na Inglaterra, e vive no Japão e na China e na Rússia.
É aqui que eles param todos. Quando chegam, todos vêm aqui, alguns começam a palrar. E há patos pequeninos que nascem cá. À beira daquele barraco, daquele quiosque, está um ninho de pato coberto de folhas.
São seres vivos como nós. Antes da gente, as aves já cá andavam. O mundo foi habitado por aves. Já tinham dois mil anos, ou dois milhões, que cá andavam. Depois é que nós chegámos atrás delas.
Aqui há tempos fui ao supermercado nos Lóios e vi algumas pombas. Antes, mal me viam andavam logo à minha volta, agora têm medo, andaram para lá a matar. Ao menos podiam botar qualquer coisa para elas não produzirem. Agora matar não acho bem. Todos têm direito à vida.
Sempre fui humana, não sei se foi por viver nisso, mas há muito quem tenha vivido nisso e até são mais ordinários.
Uma ocasião, estava na Afurada na minha casa, encontrei doze gatinhos. Passei por aquilo e fiquei doente. Fui arranjar uma caixa de papelão e botei-os lá dentro. Vim-me embora. Quando cheguei a casa começou a cair saraiva e lembrei-me que os bichos iam morrer. Fui buscá-los, trouxe-os todos. Com essas borrachas de limpar os ouvidos, criei-os a leite, leite magro. Eles quando me viam com a borracha já sabiam que era para lhes dar de comer. Era quem mais queria ser primeiro. Davam a mamada, tiravam a boca e olhavam para mim. Como os bebés fazem às mães, assim eles faziam. Criei os doze e viviam os doze comigo.
Outra vez, ia a sair de casa, parece que os animais conhecem a gente, aparece-me um cão que nunca me viu, nunca eu o tinha visto, com uma pata ao dependuro, assim direito a mim, à minha porta. Não fui trabalhar. Fui tratar dele para a protectora dos animais. Era assim. Eu até se visse um cão morto ia a casa, pegava num lençol, cortava a meio, ia embrulhar o cão, fazer uma cova e enterrava-o. Quantas covas eu fiz naquele monte da Afurada.



Uma pessoa assim
Sou Maria de Lurdes, nasci a 20 de Dezembro, tenho 75 anos, mas no meu cartão de identidade tenho menos um ano e faço em Janeiro, porque a minha mãe roubou-me à idade. Que, antigamente, para não se pagar multa, pagava-se quando se fosse registar fora do prazo, ela deu a data trocada. Mas a verdadeira data e os anos que eu tenho são 75, mas no cartão de identidade são 74.
Nasci na Afurada, sou dali, nascida e criada. Tenho lá casa, mas é muito antiga, e como não tenho dinheiro para arranjá-la, fico aqui no Cais do Ouro a tomar conta do barraco. Isto não tem nada que roubar, nem dinheiros, nem nada, mas esta juventude… Quando eu não ficava cá entraram oito vezes, destruíram tudo.
Não casei, nunca casei, para criar os meus irmãos. Fui mãe deles todos. Mas hoje não dão valor. A minha mãe  teve doze filhos, seis estão vivos. Eu acho que nenhum é igual a mim, somos diferentes. É natural, temos cinco dedos na mão, nenhum deles é igual.
Não andei na escola, nem andei a estudar, nem andei a fazer nada. Vivi na rua. Há pessoas que passaram por tudo, mas a vida sorriu-lhes, são os maiores. Julgam-se mais do que os outros, mas vamos todos para o mesmo buraco.
Noutro dia ia no autocarro, estava sentada e ao lado tinha um lugar vazio. No outro lado estava uma senhora sentada. O cavalheiro, que era um cavalheiro para todos os efeitos, preto, mas educado, e a fulana quando o viu ali começou assim a virar a cara e diz o senhor para mim A senhora não se importa que eu me sente? Homessa, o senhor não pagou o seu bilhete como eu? A outra mostrou fraca cara para dar achega a ele O senhor tem tanto direito como eu e o mesmo direito que qualquer pessoa que aqui vai. Sou uma pessoa assim.


3 comentários:

Anónimo disse...

Zorramigo

Continuas assim - e um dia destes nem escreves... Defende-te, homem, defende-te. Se não te defenderes a tu, quem tu há-de defender?...

Esta plagiada é de gritos e tem o desplante de tratar pretos como se fossem brancos, ainda que cavalheiros. Não o devia fazer. Se ela reparasse no que se passa em Itália - defendia-se.

Ora, como refere a comunicação social (???) na passada sexta-feira, durante um comício do Partido Democrático, Cecile Kyenge, a ministra da Integração, que é preta, foi alvo de bananas arremessadas em sua direcção, o que provocou uma nova onda de indignação na Itália.

Este foi mais um caso de racismo que envolveu a ministra, cidadã italiana nascida na República Democrática do Congo, depois de, no início do mês, um membro do partido Liga do Norte, que é contra a imigração, ter comparado a ministra a um "orangotango".

Agora, Cecile reagiu ao ataque com bananas dizendo que o mesmo foi “um desperdício de comida”. Gostei da resposta, como gostei do texto da Maria de Lurdes, adorei.

A brincadeira com que iniciei este comentário deve ser deitada na cesta secção porque com coisas sérias não se brinca. O que eu sou - pretendendo ser brincalhão - é parvo.

Pai perdoai-me, que eu não sei do que digo e muito menos do que escrevo.

Qjs à Maria de Lurdes, um chicharrão grandão para o Boneco e um abç para tu

Henrique
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PS -Desculpa o comprimento do texticulão.

kim disse...

Grande gamanço!

maceta disse...

valeu muito o texto e a lição... os animais sabem ser agradecidos, às vezes bem mais do que os humanos.