sexta-feira, 23 de maio de 2014

CONTRIBUTOS EXTERNOS

Mais uma saborosa crónica do Henrique Antunes Ferreira, regressado recentemente de Goa (gamada na sua Travessa, com a devida autorização)




GRALHAS SEM GRALHAS EM LISBOA



Antunes Ferreira
Estava a menos de uma semana da data fatídica de 1 de Maio, quando regressaria a Lisboa e por isso um tanto em baixo, ma non tropo. A Raquel, como habitualmente, fazia as malas – eu bem quero assumir essa tarefa, mas ela não me deixa. Felizmente. O Premanand auxiliava-a na tarefa fascinante de pesar a dita bagagem, pois dispúnhamos apenas de 60 quilos. Para o efeito tínhamos adquirido uma balança electrónica de mão. Havia decidido enviar pelo correio dois caixotes com livros e mais umas recordações; sabem como sou bibliófilo, mas sobretudo leitor… compulsivo.
 
Mário Miranda
O Zito Menezes ajudou-me uma vez mais na tarefa de embalar as coisas em dois caixotes a preceito, os quais já recheara eu. Há dois anos verificara-se a mesma cena, só que as caixas eram três. Moderara-me na aquisição de obras sobre Goa. Álbuns profusamente ilustrados a quadricromia, edições em Português, poucas, mapas e quejandos. E, sobretudo, gravuras e edições de um dos melhores cartunistas do Mundo, o Mário Miranda, natural de Damão, falecido em 2011, estava lá eu.

O Mário era meu Amigo de longa data e uma vez em Loutolim, Salcete, na sua casa, estudámos a realização de dois livros, um sobre Goa e outro sobre Portugal com desenhos dele e textos meus.
Infelizmente a Parkinson levou-o sem conseguirmos concretizar a ideia. Os seus cartuns, murais e pinturas são inconfundíveis, dado o estilo que foi apurando ao longo da sua vida. Publicou em diversos órgãos de comunicação, dentre eles o mais destacado foi The Times of India onde pontificou durante anos.

Muitas vezes quando iam a Portugal ele e a mulher, Habiba, ficavam em minha casa, onde tenho umas obras suas, incluindo uma charge sobre a minha primeira viagem à Índia que foi publicada no Diário de Notícias e cujo original também se encontra devidamente emoldurado numa parede da minha residência. 
Na parede do meu "covil"
Agraciado com diversas condecorações na Índia, incluindo a Padma Vibhushan, o segundo maior galardão civil do país, foi também premiado por Portugal e pela Espanha.

Fechado este parênteses, retorno aos embrulhos enviados por via aérea. Junto dos Correios em Pangim existe uma pequena oficina onde as embalagens são envolvidas em pano cozido sobre o qual se escrevem as moradas do remetente e do destinatário. Na loja estávamos o Dr. Menezes e eu seguindo com atenção e curiosidade o trabalho que já presenciara há dois anos. Não me contive e depois de pedir autorização ao artífice fotografei-o.

Entretanto aconteceram os 40 anos do 25 de Abril. A Fundação Oriente resolvera assinalá-lo com um espectáculo de fado, apoiada pela Semana de Cultura Indo-Portuguesa, pela Cidade de Goa e pelo Instituto Camões. Actuaria a fadista Cláudia Duarte no Salão Nobre do Institute Menezes Braganza, o anterior Instituto Vasco da Gama no tempo dos Portugueses. 
Khol de Carvalho
O arquitecto Khol de Carvalho, delegado da Fundação presidida pelo meu Amigo Carlos Monjadino foi quem arranjou os bilhetes para seis pessoas: o Dr. Zito Menezes e sua esposa Ângela, o engenheiro Manuel Caldeira e o seu filho Dip, todos goeses, os dois primeiros colegas da Raquel e eu.

Logo à entrada um deslumbramento: os painéis de azulejo azul e branco. Sobre a viagem do navegador português que pela primeira vez na História do Mundo fez a viagem Lisboa-Calecute pelo mar. Os indianos mantiveram-nos, o que não admira num país onde as artes são uma constante, desde os templos magníficos até aos quadros polícromos onde os homens do Sul, mais morenos, são pintados a azul. Para um Português, os azulejos são uma maravilha. 

Um salão com capacidade para 250 pessoas, mais coisa, menos coisa, encheu-se para ouvir a fadista, acompanhada pelo seu guitarra portuguesa, Rui Martins, e na viola Carlos Meneses, um virtuoso goês. A assistência era porém maior do que a capacidade e muita gente ficou em pé, até na antecâmara do salão. Cláudia organizara um work-shop sobre o fado e nele tinham participado as três premiadas do Concurso de Fado de Goa, Nadia Rebelo Danica Silva Pereira e Minoska Dias (no título podem ver-se as três cantando com a Cláudia). Sónia Shirsat, a conhecida fadista goesa, que muitas vezes actua em Portugal, também participou nos trabalhos que se destinavam a aperfeiçoar as jovens intérpretes da chamada canção nacional.

O público rendeu-se à Cláudia
O público rendeu-se a Cláudia Duarte, com uma presença em palco perfeita, explicando em inglês e português o que ia cantar; esguia, ágil, encantadora, a fadista transmitiu os sentimentos expressos nas canções que apresentou. Falta dizer que... canta muitíssimo bem! Tem uma voz potente e vai fazendo dela o que quer, tão depressa elevando-se a sonoridades pujantes, qual Amália, tão depressa recolhendo às mais intimistas, aos sussurros, a tonalidades que ela própria compara às da saudosa  Maria Teresa de Noronha. Nas duas pausas das suas interpretações, guitarradas completaram a actuação da fadista. Não era a primeira vez que ela se encontrava na Índia; em 2005, aquando de uma digressão pelo Oriente, ela decidira deslocar-se ao país que é um subcontinente, como me disse “para descansar”. Mas, nada disso aconteceu. Dedicou-se a estudar e a tentar interpretar a música hindustani.

O que resultou, pois até o marido que a acompanhava iniciou-se no tocar do sitar que éum instrumento musical de origem persa, e é da família do alaúde. É um símbolo da música da Índia. Tem uma caixa de ressonância – uma meia cabaça naturalmente seca - e cabo onde correm muitas cordas geralmente dezoito. É um instrumento de corda beliscada, tal como a guitarra, o banjo, a cítara e o alaúde, entre outros. Cláudia integrou, por vezes, no fado o som metálico do sitar. Tenho um no meu escritório.
 
Jardim Garcia de Orta

Mas, então, era a primeira vez que vinha a Goa, que a deixou entusiasmada e deslumbrada, com situações diversas, como por exemplo as inúmeras lojas que ostentam nomes portugueses, bem com placas de trânsito onde eles constam também. Cita o jardim Garcia de Orta, no centro da capital, o que me faz recordar a minha professora da quarta classe, Dona Clélia Marques que quando algum de nós dizia Garcia da Orta ou Marquês do Pombal em vez do correcto depresenteava o faltoso com umas palmadas com a menina dos cinco olhos, vulgo palmatória.

O concerto foi um êxito total, com a sala a aplaudir cada fado e a rir quando Cláudia usava o inglês, que atalhou dizendo que como sabia que na assistência havia muita gente que ainda falava o português, então iria empregar as duas línguas. Risos e aplausos misturaram-se com naturalidade. E a sala chegou ao rubro quando  Cláudia cantou juntamente com as três meninas locais. Para mim foi um espectáculo entusiástico, de tal forma que sotto voce acompanhava as letras dos fados. Era a confirmação do meu passado fadista; ao lado, o Zito Menezes seguia a cena com um olho no burro outro no cigano, sem ofensa. 

O semanário Goan (já citado e transcrito no textículo sobre Percival Noronha) dedicou-lhe um excelente espaço. Cativado pela elegância, simpatia e principalmente pela humildade de Cláudia o jornalista dedicou-lhe um trecho magnífico. Agora reproduzo naturalmente traduzido o final da conversa. Faço-o com a devida vénia ao jornal, mesmo sem a sua autorização… Mas o texto é tão conseguido que não podia ignorá-lo.
«(…) muitos jovens estão hoje inclinados para o fado, e as duas escolas de fado de Goa estão cheias de crianças talentosas” Mas Cláudia Duarte acrescenta que é muito difícil  "ensinar" a arte. "Você tem que viver a música, visitar casas de fado e ouvir e absorver o máximo que puder ", ela insiste. É quando Duarte ouve seus próprios discos de uma carreira profissional que já leva dez anos que percebe quanto evoluiu como artista. " Na minha juventude, a minha música estava cheia de energia e agitação; eu queria provar a mim mesmo que estava preparada para actuar pelo mundo. Hoje, estou muito mais calma e mais segura de quem eu sou. Você não pode esperar que todos gostem de si, e aceitar esse facto ajuda a sofrer menos. Isso reflecte-se na minha música actual 
 
Capa do "Povo"

No fim do concerto, muita gente foi até junto da cantora para obter um autógrafo no seu último CD, "Povo". Eu também o fiz e disse-lhe que a sua actuação me fizera ter  orgulho de ser Português. As lamentáveis tricas das comemorações do Dia da Liberdade em Portugal nada tinham a ver com a sinceridade e a sensibilidade e a arte dela. Houve muita emoção, comoção e lágrimas entre os espectadores.

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NE - As fotos que ilustram este texto são umas do autor, outras do Google e outras do Facebook do violista Mário Meneses e foram-me enviadas pela Frederika Menezes. O Zito Menezes também me remeteu várias informações adicionais que foram preciosas para a elaboração do artigo. Muito obrigado

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