sábado, 17 de dezembro de 2016

LIDO

Passos Coelho voltou a dizer coisas

O frasismo não é fase minha, gostei sempre. Do velho Millôr, que conheci miúdo, na revista brasileira Cruzeiro ("anatomia é uma coisa que os homens também têm, mas que, nas mulheres, fica muito melhor"), ao igualmente já falecido José Sesinando, no Jornal de Letras ("os terroristas raciocinam por explosão de partes"), até ao vivíssimo Dalai Lima, que tem um blogue e publica pensamentos em livros ("os adeptos do aquecimento global pecam às vezes por excesso de gelo")...
A frase dos frasistas é coisa curta, é como quem não quer a coisa, mas custa muito. Ainda estou a ver o Millôr Fernandes, como um Miguel Ângelo, frente a um dicionário Aurélio, que era o seu bloco de granito, cinzelando o supérfluo, palavra a palavra, tira vírgula, dá um passo atrás, bate no joelho de Moisés que todas as boas frases têm, e ordena: "Fala!" Se ela for uma boa frase, fala.
O frasismo é uma coisa cultivada, voluntariamente procurada, dificilmente achada. O que deve custar aos talentosos e sempre esforçados frasistas verem a obra que lhes sai do pelo ultrapassada em popularidade pelas frases saídas sem custo nem pensamento do linguajar comum. "Prognósticos só no fim do jogo", "isso é um assunto do forno interno do clube", e assim.
A literatura inglesa não quis deixar o humor involuntário por enganos alheios e criou, logo no século XVIII, uma personagem, a Sra. Malaprop, na peça teatral The Rivals, de Richard Brinsley Sheridan, que tropeça nas palavras. Trocava, por exemplo, pineapple (ananás) por pinnacle (pináculo) - o que só numa estátua de Carmen Miranda pode ser confundido. Shakespeare e Charles Dickens criaram personagens com bem melhores erros linguísticos, mas Mrs. Malaprop tem a vantagem de ter cunhado o termo em inglês: "malapropism" usa-se para o que tornou famosos os dizeres de João Pinto e seus seguidores. Se Jorge Jesus me ler ainda vamos ouvi-lo dizer: "Os malalpinismos são pinas para nós."
De usar palavras erradas e causar com isso um efeito cómico não está ninguém livre. Há dias, um leitor chamava a atenção para um minúsculo erro, quase gralha, que me aconteceu. Evidentemente, cito-o porque o percalço não me ridiculariza muito. Escrevia eu, nesta página, sobre o banzé que fez a bancada parlamentar do PSD acerca de um quase-nada. Toda crónica andava à volta da insegurança que parecia ter-se instalado entre os sociais-democratas. Escrevi: "Passos Perdido", assim, sem "s", aludindo ao corredor de São Bento onde os deputados se juntam. Millôr, Sesinando e Dalai Lima, tenho a certeza, teriam escrito o mesmo: Passos Perdido. Mas tê-lo-iam feito voluntariamente. Fazer uma boa piada sem querer não me orgulha muito.
Até pela companhia, o já citado Passos está a tornar-se um campeão da piada involuntária. Na verdade, ele está a fazê-las de forma involuntária muito especial. É que Passos quer fazê-las, mesmo, são piadas voluntárias, mas não tendo piada elas criam uma situação cómica involuntária. Não sei se dão conta, mas isso é do humor mais puro.
O problema com o humor de Passos é que ele é mediado pelos jornalistas, das classes profissionais mais destituídas de graça. Por isso José Sesinando vendia as suas frases diretamente a leitor, não se deixava entrevistar nem convocava uma conferência de imprensa para dizer: "Foi Copérnico quem primeiro viu a estrela pular." Qualquer microfone da SIC ou da TVI, estendido - "mas os fenícios já não conheciam a Estrela Polar?", "foi o Copérnico que a descobriu?"... - estragava o efeito hilariante da frase. Agora, os microfones andam à cata de explicação para o último chiste de Passos: "Sô doutor, sô doutor, o que é que quis dizer com os Três Reis Magos?"
Piada não se explica, meus. Ah, mas Passos estava a fazer uma piada? Espero que sim. Nem que seja uma piada sem querer, sempre é melhor do que uma tolice política, voluntária ou involuntária, que é a única alternativa para o episódio. Rebobinemos. Anteontem, num jantar no Parlamento com os seus deputados, Passos Coelho fez uma "predição", como ele lhe chamou: em janeiro, chegam os Três Reis Magos. Nessa mesma sala, como lembrou no seu discurso desta semana, ele despedira-se dos correligionários, nas férias de verão, avisando que em setembro "vinha aí o diabo." Setembro é a rentrée, parecia mau augúrio, o país político temeu uma crise. Sabe-se como o outono foi ameno.
Anteontem, com aquela boca arrepanhada que alguém o convenceu ser a marca de estadista, Passos anunciou a chegada dum trio, trio de três como as troikas, montado em camelos, mas troika. Para percebermos haver metáfora, ele nomeou Baltazar, Belchior e Gaspar que vinham aí para as janeiras, com "Gaspar" bem sublinhado. Herman José, para nos prevenir que era momento de subentendidos, rodava as mãos à volta de uma bola de basquete ilusória, Passos torna mordaz o fio dos seus lábios estadistas.
Pela primavera, lá teremos, nova predição, talvez sobre Santo António. "Sô doutor, sô doutor, o que é que quis dizer com o Santo António?"... Ora, talvez a questão seja: e se Passos não quis dizer nada? É que ainda me lembro daquela frase dele, em 2014: "Não devemos esfolar um coelho antes de o caçar." Como se algum português ignorasse que esfolar um coelho que esperneia é difícil, quanto mais ousar fazê-lo a um que ainda corre nos bosques. Passos Coelho fala por falar. Talvez também tenha lido o Dalai Lima: "Meu filho, tens de ter adjetivos na vida."


Ferreira Fernandes, in DN


1 comentário:

Kim disse...

Ainda há quem escreva bem